quinta-feira, 24 de abril de 2008

O Tropicalismo: Antropofagias, Canibalismos & Seus Dilemas


Caetano e Gil se tornaram uma unanimidade. Vitoriosos na música popular, a arte mais valorizada e economicamente mais atraente no Brasil, viraram artistas multimídia, políticos, escritores, poetas. Discutiram suas sexualidades em cadeia nacional.
Caetano e Gil, quando jovens, atingiram um rasgo profundo, um ponto sem volta, um Zabriskie Point, como no filme de Antonioni. Assim foi toda a geração que vivenciou o marxismo simplificado de Che Guevara e Mao Tsé, farreou com o maio de 68, desbundou e virou hippie e freak e depois da explosão caiu numa bocejante sensação de futilidade. De experiência de “abertura de cuca”, a droga passou rapidamente a uma praga social, um flit paralisante. O que fizeram Caetano e Gil, foram atualizadores de modas? Segundo Arnaldo Antunes, o Tropicalismo foi feito para ser o último movimento--e acabou sendo. Nossa época é de individualismo exacerbado e de silêncio sobre os debates culturais. Jimmy Hendrix, um dos inspiradores do Tropicalismo, canta em sua música “If Six Turn to Nine”: “Se o sol se recusar a brilhar/ Não me importo (...) Se todos os hippies cortarem seus cabelos/ Não me importo/ Tenho meu próprio mundo para contemplar.” O personagem da música fala de um recuo para um mundo interior, da fuga para a contemplação de si mesmo - o que fica subentendido é que a droga é que favorece esta introspecção. Os efeitos destrutivos - que o próprio Hendrix sentiu na pele--não são citados nem discutidos.
O filme Easy Rider, de Dennis Hopper e Peter Fonda, narra o choque da nova cultura pop da América pós-moderna com a antiga cultura agrária norte-americana da qual são oriundos os rednecks (caipiras) que asssassinam os dois hippies no fim do filme. Este final dramático simboliza que esta América agrária já apresenta sinais de morbidez e desespero homicida, enquanto observa que os hippies eram inocentes apóstolos de uma ética do consumo, de um hedonismo exacerbado que explodiria o esquema básico de valores da sociedade, sem conseguir colocar algo consistente em seu lugar. Perplexo, um dos “malucos” repete: “We blow it”, diz ele, o que significa em bom português, “Nós arrebentamos com a coisa toda”, uma observação melancólica e perplexa.

O excesso rococó, o floreio e a exuberância do barroquismo davam o tom no estilo visual daquele final dos anos 60 e começo dos 70. Alguns traços Art-Nouveau, típicos da eufórica Europa pré-1914, ressurgiam em pôsteres, em cartazes promocionais e capas de disco. Posteriormente, a crise do petróleo traria uma depressão econômica incompatível com este estilo exuberante e amante do supérfluo, e o que marcaria sua queda em desuso seria a ascensão dos punks e darks, inspirados no visual sadomasoquista e no agressividade negativa dos skinheads e das gangues como os Hell’s Angels.

Caetano propunha, nos anos 60, que assim como a bossa nova se associara ao jazz, o Tropicalismo se associaria ao rock, dando continuidade a uma linha evolutiva na música popular brasileira. Num esforço de modernização, Caetano e Gil traziam as guitarras elétricas e o ié-ié-ié importados, misturando-os com ritmos mais tradicionais, roupas e cabelos compridos que remetiam aos modismos da juventude americana e européia.

O nacionalismo de esquerda da época vaiou os tropicalistas, ao passo que eles responderam com uma retórica irada e inúmeras frases de efeito. Eles aderiam ruidosamente à ruptura dos padrões comportamentais patriarcais e rejeitavam a esquerda brasileira, que colocava como prioridade a tomada do poder, e estabelecia como secundária a reflexão sobre as mudanças de valores, a chamada “Revolução Sexual”. Caetano, Gil, Mautner, Tom zé, Torquato e outros tinham diferenças, mas o que os uniu tão firmemente, como os modernistas de 22, foi a crítica adversa. Eles queriam “entrar na estrutura do festival e fazê-la explodir” e também ousavam “entrar em todas as estruturas e sair de todas”. Com o visual hippie e o desejo de se alinharem aos rebeldes de maio de 68 numa avassaladora “revolução cultural”, os tropicalistas se indispuseram tanto com a ditadura obscurantista da época quanto com a esquerda nacionalista. O período em que o movimento explodiu foi sucinto, de 1966 a 1968. Embora não pretendessem uma ruptura política, os tropicalistas foram expulsos indistintamente pela ditadura que em 1968/69 destruiu a hegemonia cultural que a esquerda mantinha desde o governo Jango.

Assim, artistas que não tinham colocado como prioridade a contestação política tornaram-se da noite para o dia mártires do obscurantismo e da brutalidade dos militares. Eles bem que souberam capitalizar isso a seu favor posteriormente, pretendendo uma imunidade à quaisquer críticas.

Nos textos enviados para o Pasquim, do exílio, Caetano se definia como um “Nelson Rodrigues Prafrentex”. Isso quer dizer o seguinte: Caetano pretendia uma ruptura cultural, comportamental, não fazia contestação política. Esta postura é, em geral, a de todos os tropicalistas. Nelson Rodrigues foi um conservador político e comportamental. Nelson defendera a ditadura, chamando-a de “Revolução”. Mas era também oposto à “Revolução Sexual”.

O diferencial é que Caetano se confessa de direita em matéria de política, mas adepto do progressismo de esquerda em matéria de costumes. Postura semelhante tomou também a da esquerda norte-americana, que abdicou da transformação das estruturas sociais para defender apenas interesses particularistas.

Com a volta à democracia, em 1984, esta postura é aos poucos tornada hegemônica. Em plenos anos 90, temos Caetano e Gil consagrados, defendendo e fazendo apologia do governo de centro-direita de FHC. Como notou o sociólogo Gilberto Vasconcelos, a aliança entre FHC e ACM é um enclave tipicamente tropicalista, bem ao gosto do vale-tudo que eles instauraram. E quem começou com o termo “tropicalista” foi Gilberto Freyre, mas nem é citado quando falam neste movimento artístico; Freyre é considerado defensor da democracia racial brasileira, postura conciliadora que atenua o peso do racismo e da escravidão no Brasil. A postura de conciliação dos contrários é característica tanto da sociologia de Gilberto Freyre quanto do descentrado movimento tropicalista.

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