segunda-feira, 30 de junho de 2008

Lições de Abismo Aqui e Agora

O livro de Gustavo Corção, Lições de Abismo (Livraria Agir Editora, 13a edição, 1973), é a obra literária mais famosa deste esquecido pensador e artista católico. As inúmeras edições desde a primeira em 1953 fazem pensar que Corção tinha um público significativo. Ficaram famosas suas polêmicas com Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athaíde, partidário de um catolicismo mais liberal, enquanto o de Corção era duramente tradicionalista. Corção foi chamado até de “satã” pelo Pasquim, e antipatizado por uma geração que mergulhara, como o padre Nando de Quarup, no catolicismo de esquerda, fazendo a opção preferencial pelos pobres.

Antes de analisar o romance, será preciso contextualizar o catolicismo de Corção. Enquanto intelectuais católicos como Tristão de Athaíde passaram da direita nos anos 30/40 para a esquerda na década de 60, quando do surgimento da Teologia da Libertação, Corção era um ex-ateu, e, quando retornou ao catolicismo, reafirmou furiosamente os dogmas. Diante da polarização da Guerra Fria, acabou resvalando para a postura de apoio ao regime militar brasileiro. Tornou-se, junto com Nelson Rodrigues (embora sem a grosseria ostensiva deste) o reacionário, o direitista que toda a geração marcada por 1968 identificou e atacou. Mas vale a pena reexaminar uma obra literária do intelectual católico Gustavo Corção, que se inscreve numa linhagem de pensadores católicos que se afigura uma de nossas duas únicas tradições de pensamento enraizadas (a outra é a vertente marxista). Distante das metáforas sexuais e das frases de mau-gosto que atrapalham mesmo as melhores obras de Nelson, Corção é um escritor provido de sensibilidade estética: ao falar de morte, passa longe da morbidez e do cinismo.

Em Lições de Abismo, um professor de filosofia chamado José Maria descobre que está acometido de um câncer no sangue. Amante de ópera, culto e ilustrado, José mergulha na obsessão da idéia de morte, pensando constantemente no fim. Em meio a devaneios e especulações metafísicas, José Maria se sente desagregar. Está curiosamente próximo do existencialismo cristão, embora faça a seguinte observação:
Chego a dizer, com Kierkegaard, que ‘quanto mais me demonstrarem a imortalidade da alma menos creio nela.’ Que quer isto dizer? Terei eu um ceticismo que me leva a descrer das operações da inteligência, e que prefira a penumbra à claridade, como parece que seja o gosto de um Heidegger, e mesmo de Kierkegaard? Não. Não é bem essa a dificuldade. Se realmente me repugna a iluminação crua do cartesianismo, não me atraem as obscuridades dos filósofos germânicos. (CORÇÃO, Gustavo. 1973, p.55)

A personagem operística Kundry simboliza, daí por diante, a morte anunciada. A partir de então José Maria vive experiências existenciais que lembram as de Antoine Roquentin em A Náusea. Faz então a famosa experiência do negativo, que perpassa a filosofia de Sartre e Heidegger e os textos de Camus. Caindo nos abismos da subjetividade, José Maria vivencia momentos de extrema delicadeza e de sensibilidade muito apurada:

‘A descoberta do eu –li hoje nas páginas de um filósofo – se completa nos abismos da subjetividade.’ Esse é o documento cifrado, escrito em caracteres rúnicos, que me caiu nas mãos por acaso, e que indica de modo tão conciso o caminho do centro da Terra. Eia, Axel, chegou a hora. Despede-te da bela Gräuben. Vamos descer aos abismos. (CORÇAO, 1973, p. 234)

O romance faz um movimento de mergulho e volta à tona, em busca da sala do trono no castelo encantado de si mesmo. José Maria contesta Freud, quer achar o eu cartesiano, onde o eu estava como um rei em seu castelo, mas só encontra silêncio, escuridão, sente-se estrangeiro de si mesmo, vê o próprio dedo como “um pau de cerca derrubado, que o triste dono deste solar arruinado calcula como e quando consertará” (CORÇAO, 1973, P. 237). Nada o consola, revolvendo a memória, sente-se um prisioneiro melancólico que folheia um álbum; não se encontra na própria imaginação, essa “câmara de projeçõescombinadas, que superpõe espetáculos, aproximando vulcões, estrelas e rosas.” (CORÇÃO, 1973, p.238) Cai, despenca no vazio, acorda gritando, agarrando-se ao título de professor. Imagina o dia em que partirá para o outro mundo, “vendo o mundo afastar-se devagar, como um cais com muita gente agradecida, com muitos lenços”. (CORÇÃO, 1973, p.239)
Em outros momentos, no entanto, José Maria demonstra um elitismo aristocrático, criticando posturas nacionalistas e socialistas por seu coletivismo, que ele julga abjeto, tendo assimilado ao seu cristianismo a crítica de Nietzsche à “moral dos escravos”. José Maria possui uma visão olímpica do mundo:
No trecho supracitado, o personagem é um “esteta do absurdo” que encontra um nacionalista romântico e boêmio. Surge hostilidade entre os dois, pois José Maria está vivenciando profundamente o negativo. O que o eleva dos abismos da subjetividade é sempre a experiência do belo. Ostensivamente influenciado por Machado de Assis, Corção cita o conto A Missa do Galo e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Consta que publicou, inclusive, um ensaio sobre Machado.

Um comentário:

Gilberto G. Pereira disse...

Caro Lúcio, não sei se você chegará a ler este comentário, tão tardio. Mas é que ao ler agora seu ensaio, me lembrei de uma entrevista de Vinicius de Moraes, no livro Encontros, organizado por Simone Campos. A entrevista foi dada a Tarso de Castro, Jaguar e Luiz Carlos Maciel, no Pasquim, em 1969. Tudo isso para dizer que nessa entrevista Vinicius de Moraes diz que Gustavo Corção era "o reacionário no seu grau mais extremo". E num bastidor de palestra fiquei sabendo que Alfredo Bosi se arrependeu de não ter colocado Lições de Absimo em sua História Concisa da Literatura Brasileira, só porque Corção era de direita. Se isso for verdade, Bosi se arrenpedeu mas nem tanto, já que seu livro foi reeditado recentemente e não consta nem citação en passant do romance de Gustavo Corção Borba.
É isso.
Abç!