Brando a nu | ||
É um começo tipicamente americano, a chegada triunfalista a Nova Iorque, Marlon Brando fulminante, desejoso de vergar o mundo a seus pés. Acima de tudo, é a descrição de um corpo que não pode passar despercebido, "um espécime físico perfeito", os jeans mais apertados de Nova Iorque, dois tamanhos abaixo de forma a moldar os genitais. Podia ser o início de um filme porno, é o início de "Brando Mas Pouco" (o título português aproveita o trocadilho com o nome do actor, mas acaba por ser pudico face ao original "Brando Unzipped" - literalmente "Brando de braguilha aberta"). Não é a (mais uma) biografia de como Brando se desnudou mais do que qualquer outro actor apesar de permanecer vestido (a vulnerabilidade à flor da pele que ele se esforçava por dissimular quando representava), é a biografia do corpo que sempre quisemos despir. Brando, a "fuck machine" que emerge de "Brando Mas Pouco" (Pedra da Lua), é a consumação definitiva das fantasias projectadas sobre alguém que teve demasiado corpo. Nenhuma possibilidade ou impossibilidade foi excluída, este é um relato sobre os anos 1950 capaz de escandalizar os anos 2000 ao ritmo de uma revelação por página (e são 768, no total!). Pedofilia, travestismo, "fellatios" com anónimos, incesto, orgias masculinas. Se não aconteceu, podia ter acontecido - mesmo não conseguindo (ou não querendo) suspender a nossa incredulidade, admitimos que se há corpo que pode aguentar com tudo é o dele, Brando. Podia ser um filme porno, é "Brando Mas Pouco": uma catalogação de relações sexuais que não distinguiam géneros. Uma lista sonora de amantes, de Hollywood e arredores: Burt Lancaster, Laurence Olivier, John Gielgud, Marilyn Monroe, Marlene Dietrich, Rock Hudson, Grace Kelly, Rita Hayworth, Leonard Bernstein, Noël Coward, Shelley Winters, Ava Gardner, Hedy Lamarr, Anna Magnani, Montgomery Clift, James Dean, Tallulah Bankhead, Ingrid Bergman, Edith Piaf... Material "explosivo", como se costuma dizer. Por mais que cada página tenha uma revelação abre-bocas, o mais surpreendente é que tudo isto tenha sido mantido em segredo até agora - continua a falar-se de Brando, na televisão ou nos jornais, sem sinal do omnívoro bissexual que "Brando Mas Pouco" retrata. Darwin Porter, do outro lado do telefone, explica que o que lhe interessa é chegar onde nenhum outro biógrafo chegou antes, revelar material inédito. "Por exemplo, em vez de escrever sobre Marilyn Monroe e John F. Kennedy, escrevi sobre o seu ''affair'' com Ronald Reagan em 1950. Você não podia saber que ela teve um caso com Ronald Reagan", diz este cândido senhor de 70 anos, que é o autor de "Brando Mas Pouco". Alguém disse que Porter é um escritor de escândalos de celebridades e ele não se importa. Até aceita. "O inglês Oliver Cromwell disse uma vez: ''Pintem-me como sou, incluindo os defeitos.'' Acho que a biografia do futuro incluirá os defeitos e, para isso, será preciso cavar fundo a vida das pessoas. Pode dizer: mas isso é invasão de privacidade. Pois é. Mas o que eu penso é: se teme que a sua privacidade seja invadida não tente ser uma estrela de cinema. É um trabalho sujo, mas alguém tem de o fazer." A elite artística Não é quando vemos os filmes e lemos as colunas de "gossip" dos jornais que Hollywood nos parece longe. É quando se lê "Brando Mas Pouco", onde Hollywood parece viver segundo a sua própria regra, onde uma estrela pode ter vida dupla e passar incólume, por assim dizer. "Sempre houve uma elite artística na América, onde se podia dizer e fazer o que se quisesse", diz Porter. "Dentro dessa elite artística - isto é, o mundo de Tennessee Williams, de Tallulah Bankhead, de Marlon Brando - não se era julgado. Vi as coisas mais infames, ouvi as coisas mais infames, mas tudo isso se passava dentro de portas fechadas." Porter olha para as estrelas como se elas pairassem acima dos mortais - e isso já não parece ser deste tempo (e é ele que pronuncia o nome que quebra o feitiço, que mostra como a tradição já não é o que era: Britney Spears). Porter é um desses "insiders" que toda a vida escreveu sobre Hollywood. "Brando Mas Pouco" resulta de um trabalho de mais de 40 anos, recolhendo e anotando impressões e memórias de terceiros, sobretudo Glorias Swansons, estrelas desvanecidas, que é quando elas estão mais disponíveis. Lembrem-se: é um trabalho sujo, mas alguém tem de o fazer. A biografia é um relato oral, e não comprovado, baseado no testemunho de pessoas que privaram com Brando e cujas motivações podem ser as menos inocentes: alguém que Brando desiludiu em busca de retribuição, alguém tentando passar por amante de Brando para se engrandecer... Porter descreve o seu método: nunca entrevistou ninguém especificamente sobre Brando, mesmo que Brando fizesse parte das suas segundas intenções; limita-se a ir ter com as pessoas e a esperar que a memória faça das suas. "Marlon Brando fazia parte da tapeçaria da vida das pessoas e eu sempre tive um diário onde ia registando coisas que podia vir a usar. O diário tem agora tantas coisas que nunca conseguirei publicar um décimo de todo o material que tenho! Dou-lhe um exemplo: quando passei uns tempos com Tallulah Bankhead, servindo-lhe bebidas à noite, ela contou-me histórias de Marlon Brando, John Barrymore, Ethel Barrymore... gente sem fim. Em breve vou encontrar-me com uma actriz em Union City, New Jersey - não lhe vou dizer quem - e espero que ela partilhe imensas memórias. Também quero visitar a Joan Fontaine antes de - não devia dizer isto - ela morrer..." Fulminado pelas estrelas "Brando Mas Pouco" pertence a essa família de biografias apócrifas, em que a história secreta, escabrosa, é a boa história. Como "Hollywood Babylon", de Kenneth Anger. Porter quase solta um gritinho de prazer. "Acertou na ''mouche''", diz. Acaba de escrever o terceiro "Hollywood Babylon", que foi publicado já depois desta entrevista com o Ípsilon, 400 páginas picantes sobre estrelas de outrora e agora. Um livro "para o século XXI", ao lado do qual o original parece um documento "bastante inócuo", diz. O que Porter tem em comum com Anger, para lá do potencial chocante das suas histórias, é a crença de que o lado obscuro é a continuação da celebridade por outros meios. "Brando Mas Pouco" é uma espécie de biografia de série B, como atesta a sua escrita despreocupada, de tablóide. Numa palavra: "pulp". Ela centra-se na primeira metade da vida de Brando, presumivelmente os seus anos de maior voracidade (bis)sexual; a partir de 1961, quando a sua carreira desacelera, a biografia acelera, resumindo-se à "petite histoire" ilustrada. Mas não é carreira de Brando que determina a biografia, é a sua presumível vida sexual. A certa altura, alguém diz que Brando foi particularmente activo enquanto homossexual nos anos 40 e, de forma menos intensa, nos anos 50, e que depois disso, à medida que envelheceu, parece ter levado uma vida "normal" e é, sobretudo, por isso, que Porter se desinteressa dela. "Brando Mas Pouco" não é a biografia do actor Brando - a sua meteórica ascensão entre a Broadway e o cinema está lá, mas é uma narração paralela e secundária - mas existencialismo de alcova, o retrato de um monstro de sensualidade e sexualidade, que usou o corpo para dominar os outros (a biografia conta como, antes de entrar no palco, Brando se masturbava de forma a que a erecção fosse visível em cena). Num documentário recente ("Brando", de Mimi Freedman e Leslie Greif, 2007), o actor Edward Norton nota como as pessoas costumam pensar em Brando como "um ícone do vigor masculino" quando, na verdade, ele era uma "justaposição de coisas", tão incrivelmente masculino quanto incrivelmente feminino. Para lá da sua improbabilidade, "Brando Mas Pouco" surge como a encarnação - encarnação no sentido mais literal: a ideia torna-se carne - desse hibridismo, uma espécie de terceira via, ou terceiro sexo. Também é a prova de que o fascínio de um corpo não termina com a sua morte. Nos Estados Unidos "Brando Mas Pouco" foi publicitada como "a biografia que teve de esperar que Brando morresse". É mais do que uma "tagline", confirma Porter, autor de outras biografias, igualmente reveladoras, de gente como Katharine Hepburn (onde defende que ela e Spencer Tracy seriam bissexuais dissimulados), Howard Hughes, Humphrey Bogart ou Michael Jackson. Esta última foi a mais difícil porque o biografado ainda estava vivo. "A minha biografia é o primeiro livro significativo publicado após a morte de Brando. Nunca o publicaria enquanto ele era vivo. Não sei se ele me teria processado. Os advogados de Katharine Hepburn ter-me-iam processado, na verdade eles ameaçaram fazê-lo mesmo depois de ela morrer. Agora, na sequência do meu livro, estou sempre a encontrar referências à bissexualidade de Katharine Hepburn, até na primeira página do caderno literário do ''New York Times''. Acho que haverá mais coisas no futuro sobre Marlon Brando que seguirão o mesmo padrão. Só tento ser o primeiro." Apesar do seu conteúdo bolinha vermelha (o mais notório é um grande plano de um "fellatio" de atribuição duvidosa, entre Brando e um dos seus amigos mais próximos, o também actor Wally Cox), "Brando Mas Pouco" revela simultaneamente um fascínio adolescente, um olhar que se diria cândido, sobre esse mundo de adultos. Talvez isto explique alguma coisa: perguntamos a Darwin Porter como é que ele se interessou por Hollywood e vamos parar à infância dele. "A minha mãe era assistente de uma cantora e dançarina muito famosa chamada Sophie Tucker. Toda a gente estava sempre em casa de Miss Sophie: Frank Sinatra, Judy Garland... Eu saía da escola e corria para casa dela, para ver quem é que podia lá estar. Uma vez a Judy Garland cantou ''Over the rainbow'' para mim, quando eu era pequeno. É esse rapazinho fulminado pelas estrelas que agora escreve sobre elas." Kathleen Gomes (PÚBLICO) | ||
Um observatório da imprensa para a cidade de Bom Despacho e os arquivos do blog Penetrália
sábado, 16 de agosto de 2008
Brando a Nu
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