Gerald Thomas: "Não quero e não posso aparecer no Brasil tão cedo"
(entrevista)
Antonio Júnior
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Em janeiro de 1984, estréia a primeira versão de All Strange Away, de Samuel Beckett, no palco do histórico La MaMa Experimental Theatre Club, em Nova York. Na direção, um carioca que daria muito o que falar nas décadas seguintes: Gerald Thomas. De volta ao mesmo teatro este ano com Anchor Pectoris, ele lotou a casa e foi ovacionado pela crítica local. Em crise com os seus próprios valores e com o mundo que o rodeia, além de decepcionado com o processo e a polêmica gerados com a exposição de suas nádegas no final da estréia da ópera Tristão e Isolda, no Teatro Municipal (RJ), o diretor prepara uma nova montagem norte-americana em cima da popular figura de Dom Quixote e escreve sua autobiografia, Notas de Suicídio, onde promete nada esconder.
Aos 49 anos, Gerald Thomas já dirigiu 70 montagens em 12 países, trabalhou com ícones como Fernanda Montenegro e foi parceiro amoroso de atrizes do quilate de Giulia Gam, Fernanda Torres e Beth Coelho. A nossa conversa – e amizade – se desenvolveu on-line nos últimos dois meses. Teve como ponto de partida uma paixão mútua, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-89), que foi amigo pessoal do nosso entrevistado. [AJ]
AJ - Como situa ANCHOR PECTORIS em sua carreira?
GT - Olha, querido, foi uma volta e tanto ao lar, vamos dizer assim. La MaMa é o teatro onde comecei a minha carreira teatral, há mais de vinte anos. Então, foi uma emoção e tanto esse retorno nietzscheano. Fiz tudo lá, os Becketts, ou seja, as premiéres mundiais de Beckett. Depois viemos pro La MaMa com a Companhia Brasileira de Ópera Seca, com a Trilogia Kafka. Quando desembarcamos aqui com Flash and Crash no Lincoln Center, em 1992, foi uma catástrofe para Ellen Stewart, a fundadora do La MaMa, e isso foi tomado como uma ofensa pessoal. Demorou anos pra ser curado. Prometi um monte de espetáculos pra Ellen mas nunca consegui entregá-los por falta de verba. Ela nunca me perdoou. Então, quando ela, do nada, de repente me convida para (em 12 dias) criar, escrever, musicar e iluminar e dirigir um espetáculo com uma companhia nova, aceitei o convite na hora. Anchor Pectoris foi um estouro. O East Village veio em peso e a “volta ao lar” foi tudo o que tinha que ser. Mas me deixou num estado completamente melancólico e esse eterno retorno me atrofiou. Não tenho resposta pra isso.
AJ - O título é uma referência ao termo que ilustra a depressão também como uma âncora no peito. Esta obra é resultado de uma crise pessoal?
GT - Justamente o que estava dizendo. Crise total! Ao mesmo tempo, tendo delegá-la pra outros trabalhos de forma metafórica, analógica ou metalingüística. Exemplo? Dom Quixote – nesse momento ainda trabalho com o titulo provisório de Bloom’s Quixote’s Expedition (simplesmente porque as iniciais BQE também servem para a Brooklyn Queens Expressway, que é a maior via expressa que liga dois dos maiores bairros aqui em Nova York). O espetáculo será feito num terreno baldio debaixo dela (é uma via elevada) e o meu dom Quixote é o Arthur Bispo do Rosário, magnífico louco genial artista, o maior de todos, o dadá brasileiro, o Colombo brasileiro confinado a um manicômio e que via lá seus monstros assim como qualquer um vê os seus, assim como eu vejo os meus.
AJ - O dramaturgo Samuel Beckett é a sua maior referência teatral?
GT - A maior de todas em texto, estética, mas não cenicamente. Cenicamente é Tadeuz Kantor e talvez o Robert Wilson. Ou Pina Bausch. Difícil dizer...as influências são muitas. Devo muito a Kafka e Dante por exemplo, mas até que ponto eles que não são teatro e sim literatura não me levaram até o teatro...entende? Nem sempre o teatro influência o teatro. Francis Bacon o pintor tem mais a ver com o meu teatro, assim como Marcel Duchamp também tem. Filosoficamente estou mais perto do cinema de Glauber do que de qualquer teatrólogo.
AJ - Como foi sua convivência com Beckett? Dizem que ele era um homem difícil.
GT - Nada difícil. Tímido, deprimido, retraído e não queria ver ninguém. Até hoje não acredito que ele me via com tanta freqüência. Conversávamos sobre absolutamente tudo, desde quem estava trepando com quem na classe teatral de NY até – ele me testava muito sobre o quanto eu sabia sobre sua obra – seus próprios textos. Citava de repente, uma frase solta de uma de suas peças e eu tinha que responder de qual peça se tratava, ano em que havia sido escrita etc. Alto, magro....parecia uma escultura de Giacometti, assim como seus personagens. Falava num irlandês baixíssimo. Ele era “O” Beckett, mas sempre fazia com que a gente fosse grande, nos os visitantes fossemos maiores do que ele. Estava sempre deprimido, não sabia se conseguiria continuar. Olhava, às vezes, pro vazio por horas a fio. Dava aflição. Abaixava a cabeça. Ficava lá, de cabeça baixa. A maior e mais generosa figura da minha vida.
AJ - Seu mundo interior, Gerald, é uma resposta ao mundo externo?
GT - Cara... não sei mais diferenciar a imagem pública da privada. E isso é serio. Não sei mais se sofro na primeira ou na terceira pessoa. Não sei mais se a questão do ego ficou tão grande que o “ser humano” aqui dentro (e, portanto, seus problemas físicos, emotivos, etc.) ficou “on hold” ou negligenciado.Ou se só consigo me ver no planeta terra enquanto me justifico através da minha arte. Não me considero tendo valor nenhum enquanto não produzo. No entanto reconheço que isso não é normal. Mas não tendo o que dizer e como dizê-lo, me sinto “unworthy”, inútil, abaixo do nível do mundo. É o fim!
AJ - O livro que você está escrevendo, NOTAS DE SUICÌDIO, é uma autobiografia?
GT - Totalmente! Conto tudo sobre esses 49 anos que me trouxeram até aqui. E se chama Suicide Note porque eu começo onde Alan Schneider (o velho diretor de Beckett da década de 50, 60 e 70) foi morto em Londres atropelado por um ciclista, a 500 metros de onde eu morei, cruzando a rua. Ele era norte-americano e olhou pro lado errado no cruzamento de pedestres. Beckett havia me contado – em meados dos anos oitenta – que ele morria de rir com as mil e uma teses que os acadêmicos teciam sobre quem era Godot, e o que era Godot... quando na verdade, Godeaux era um ciclista no Tour de France que, em 1938, simplesmente não chegou até o Champs Elisées... e as pessoas ficaram lá esperando por dias e dias e dias... e ele jamais apareceu e nunca mais se ouviu falar do cara. Pra encurtar: Scheider teve seu Godot (ou Godeaux), seu ciclista, mesmo que 50 anos depois e mesmo que em Londres, pois ao postar uma carta pra Beckett em Paris, ele foi pego, caiu de mau jeito e morreu. Começo Suicide Note dizendo que estou andando naquela mesma rua 40 vezes ao dia, esperando que o meu Godot chegue também.
AJ - No seu trabalho existe uma espécie de paixão pelo anticonformismo. É proposital?
GT - Sou assim na vida. Sou assim quando vou ao banheiro. Sou assim quando ouço notícias. Não agüento ir dormir. Mas também não agüento acordar.
AJ - Como é o seu processo de criação? Você é racional ou aposta no inconsciente?
GT - Não sei mais diferenciar um do outro, sinceramente. Nesse mundo em que vivo, não sei mais a diferença. Olha em volta, olha a loucura, olha o desespero! Ele é racional ou é inconsciente?
AJ - Já foi casado com várias atrizes. Como lida com elas no seu trabalho? A intimidade amorosa não interfere no processo criativo?
GT - Esse é um assunto tão delicado, mas tão delicado nesse momento que prefiro não entrar nele. Depois que li uma entrevista da Fernanda Torres no Globo faz umas duas semanas, percebi que somos todos uns alienígenas e que tenho mais é que calar a boca mesmo sobre meus casamentos e que somente quando Suicide Note sair é que as pessoas saberão o que se passou por trás do palco.
AJ - O que pensa dos críticos que dizem que o seu trabalho é provocador e visual, não valorizando o texto e os atores?
GT - Honestamente já não leio mais os críticos. Os mesmo que acabam comigo são os mesmos que me deram todos os prêmios Moliéres, etc. Ha uma relação tão intensa e tão antropofágica no Brasil que dá engulhos.
AJ - Quem apontaria como fundamental para o desenvolvimento do teatro brasileiro?
GT - O estudo profundo de toda a obra de Nelson Rodrigues como sendo matéria obrigatória em todos os colégios e faculdades. É incrível, mas nem mesmo o pessoal que faz teatro conhece a fundo a obra de Nelson, que definitivamente está entre as cinco maiores do mundo e de todas as épocas.
AJ - O escritor francês Raymond Radiguet dizia que a vanguarda começa em pé e termina sentando muito rápido, ou seja, se referia à cadeira da Academia. Você se considera de vanguarda?
GT - É um tema delicado. No momento estamos todos estatelados olhando uns nos olhos dos outros nos perguntando o que fazer. Típico de virada de século, virada de milênio. Não há uma vanguarda parecida com a outra, porque não há uma época parecida com a outra. Nessa nossa época “virtual” terá que aparecer a resposta, digamos, adequada. Ela ainda não apareceu.
AJ - Quais os seus projetos? Algo para o Brasil?
GT - Não quero e não posso aparecer no Brasil tão cedo. Ainda não fui inocentado pelo tal ato obsceno. Além do mais, sofri de over exposure. Melhor dar um “tempo” de Brasil.
- obra selecionada de gerald thomas
All Strange Away (1984)
Trilogia Beckett (1985)
Quartett (1986)
Carmem com Filtro (1986)
Eletra com Creta (1986)
O Navio Fantasma (1987)
Trilogia Kafka: Um Processo - Uma Metamorfose - Praga (1988)
Mattogrosso (1989)
M.O.R.T.E. (1990)
Fim de Jogo (1990)
The Flash and Crash Days (1991)
Esperando Godot (1991)
Narcissus (1994)
O Sorriso do Gato de Alice (1994)
Unglauber (1994)
Doutor Fausto (1995)
Nowhere Man (1997)
Moises e Aarao (1998)
Tristão e Isolda (2003)
Anchor Pictoris (2004)
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