Desde que comecei este blog, minha quantidade de leituras diminuiu. Não pelo tempo que gasto escrevendo aqui, mas pelo fato de que me dispersei demais: comecei a assinar mais revistas, a xeretar mais coisas na internet, e termino me desacostumando à leitura contínua de um livro inteiro.

Nestes dias de praia, fico feliz de ter me concentrado mais –e tive tempo de me divertir com um livro recém-lançado pela editora Objetiva, que trata desse assunto de leituras interrompidas, mal-feitas, esquecidas, ou simplesmente inexistentes.

Trata-se de Como Falar dos Livros que Não Lemos?, e foi escrito por Pierre Bayard, professor de literatura na Universidade de Paris 8 e psicanalista.

Bayard é terrivelmente satírico, mas a principal qualidade de seu livro é que, ao mesmo tempo, contém idéias sérias e verdadeiras sobre a cultura literária e nossa maneira de nos relacionarmos com ela.

Ele começa citando Um Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. É um dos romances que ele só folheou; Bayard usa aliás um código para indicar sua familiaridade com os textos a que se refere. Há os “LO” (livros de que ouviu falar), os “LF”, livros que folheou, “LE”, livros que esqueceu, e os “LD”, livros que desconhece.

Pois bem, no romance de Musil há um personagem que é bibliotecário, e que aparenta conhecer todos os volumes da imensa biblioteca de que toma conta. Como você fez?, pergunta-lhe um visitante. O segredo, diz o bibliotecário, é nunca ter lido nenhum dos livros da biblioteca. O título, o índice, e o recurso a catálogos bibliográficos dá plenamente conta do problema. Se ele fosse ler os livros um a um, morreria antes de atingir um milésimo das leituras necessárias, e naufragaria na ignorância.

A fábula é irônica, mas Bayard tira dela um ensinamento interessante. A cultura, diz ele, não depende apenas (ou nada) do que podemos absorver de um livro em particular, mas da nossa capacidade de “situar” o livro num contexto feito de relações com outros livros.

Evidentemente, isso não é um elogio da não-leitura, mas sim de uma espécie de conhecimento “secreto” a respeito do que vale a pena ser lido, e quando, e como... Ele próprio admite alegremente nunca ter lido o Ulisses, de James Joyce, mas sabe (graças a sua “cultura”) o que é o livro, o que representa, e pode citá-lo em suas aulas, ou recorrer a ele se necessário, sem que por isso tenha vivido a experiência de uma leitura de ponta a ponta.

Bayard é especialmente pérfido ao citar alguns textos de Paul Valéry, onde o famoso poeta deixa claro não ter lido os autores que comenta extensamente. O primeiro é Proust, e Valéry é explícito: leu pouquíssimo. O segundo é Anatole France, objeto de um famoso discurso, supostamente em sua homenagem (Valéry assumia a sua cadeira na Academia Francesa), onde o poeta sequer cita o nome de seu antecessor, e destrói a sua imagem a cada elogio que lhe dedica. É que Anatole France ironizara, muitos anos antes, o ídolo de Valéry, Stéphane Mallarmé.

Justo aquele que, num verso célebre, dissera “já ter lido todos os livros”. Licença poética, é claro. Diz a lenda que o último ser humano a ter lido todos os livros à disposição em sua época foi Pico della Mirandola, lá por 1400 e tantos.

Valéry também escreveu sobre Bergson sem dar a mínima indicação que conhecia as obras do filósofo. Para cúmulo da perversidade, Bayard cita um livro sobre “o método crítico” de Valéry, onde elogiosamente se afirma que a este interessava menos o autor, o que ele tinha escrito, os seus livros, e mais a idéia da obra. Ou seja, o autor como “símbolo” de alguma coisa: da total dedicação intelectual a uma única idéia, por exemplo, ou da impossibilidade estética do romance, etc. etc.

São as leis não-escritas do alto mandarinato, que tantas vezes pilham os autodidatas em delito de honestidade.

Pessoalmente, acho bom dizer, quase nunca abandono um livro pela metade. Mesmo se chato, vou até o final. O contrário do que faço no cinema, onde tenho grande prazer em sair a qualquer momento. “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzki, abandonei depois de uns quinze minutos. “Menina de Ouro”, de Clint Eastwood, uns dez minutos antes do fim.