quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Artigo de Regina Coeli sobre Mirisola

A narrativa de Marcelo Mirisola

Marcelo Mirisola, no seu primeiro romance, intitulado O Azul do Filho Morto, publicado em 2002, descreve o tédio do culto ao corpo e o patético das relações afetivas, reduzidas ao sexo sem sentido e à impotência social. Tais experiências são cristalizadas na imagem do narrador abraçado ao filho azul, morto, boiando num vidro de maioneggs. No final do romance o narrador descreve a presença desse filho, boiando em um vidro, colocado em cima de um forno de microondas.

Nascido em São Paulo em 1966, Marcelo Mirisola publicou mais dois romances: Bangalô (2003) e Joana a Contra Gosto (2005a) e dois livros de contos: Fátima fez os Pés para Mostrar na Choperia (1998), e Herói Devolvido (2000), além de um livro de crônicas: Notas de Arrebentação (2005b). Uma de suas novelas foi publicada pela revista Cult.21

Pela imprensa não especializada em temas literários, o autor é descrito por seu "cafajestismo militante", "pretensamente iconoclasta" da Geração 90, conhecida no campo literário como a geração dos transgressores. Um articulista da revista Veja reproduz a fórmula para escrever um livro transgressor que inclui: escrever com desleixo; ser nojento; falar de sexo selvagem; criar personagens malditos e ser narcisista.

O conceito de Geração 90 foi "forjado" por Nelson de Oliveira (2002), por sugestão de Marcelino Freire, um dos membros dessa geração. Foi Nelson de Oliveira quem reuniu uma coletânea dos escritores nacionais recentes, um grupo, segundo ele, "heterogêneo, de figuras muito díspares". Cada autor segue uma linha diferente: uns são voltados para a literatura psicológica, outros são mais formalistas e um terceiro subgrupo trabalha com essa prosa confessional da Internet. Marcelo Mirisola poderia ser incluído no terceiro subgrupo, por sua prosa confessional. O termo Geração 90 foi criado como um facilitador para identificar essa linha de produção literária recente no Brasil, sintetizando-a para o público, diante da heterogeneidade dos escritores. Essa identificação parece ter cumprido sua função como sinalizadora desse momento, embora Marcelo Mirisola, em entrevistas, recuse essa filiação.

Porque se discute o quanto literária é sua obra,22 Mirisola é incluído, do ponto de vista institucional do campo literário, em quase todas as propriedades específicas que suscitam a experiência estética. Essas propriedades, como mencionei antes, reeditam a pergunta de Mauss (2003) sobre a eficácia da magia, refeita no campo da arte, como fizeram Antonio Candido (2000), Lévi-Strauss (2003) e Bourdieu (1996) no tocante à literatura: é a famosa tríade autor, público e leitor. Os livros de Mirisola foram objetos de resenhas de outros escritores consagrados em revistas e blogs de divulgação de arte e lazer, como a resenha de Moacyr Scliar (2006) na revista Bravo, que divulga produtos culturais, e publicados por editoras de prestígio, como a Editora 34 e a Record.

Como escritor reconhecido, Mirisola foi objeto de tese de doutorado, intitulada Estratégias para Enfrentar o Presente: a Perfomance, o Segredo e a Memória, defendida na UERJ, na qual a autora, Luciene Azevedo (2004), identificou sua narrativa como literatura de entrave. Essa literatura "quer anarquizar com qualquer transcendência, apelando para a aparente concordância em relatar 'o que é' (Azevedo, 2004, f. 39), indicando "um apetite pelo presente que quer barbarizar, quer reeditar a experiência do choque". Tal apetite concretiza-se através da exposição cínica de uma voz que esquadrinha os aspectos mais conflitivos, reificantes e violentos da realidade, "regozijando-se em mimetizar certo mal-estar provocado pelos acontecimentos contemporâneos" (Azevedo, 2004, f. 187).

Dentre as ferramentas de estilo da literatura do entrave, e especialmente das narrativas de Marcelo Mirisola, analisadas por Luciene Azevedo (2004, f. 27),

a tática principal é sempre a do excesso, a dos transbordamentos, dos humores, dos afetos, dos sentidos. A linguagem relativamente trivial aposta nas gratuidades, como exercício de banalização da crueldade, e as opções pelo grotesco, pelo escatológico e pela sordidez são misturados a um humor corrosivo que se regozija com o mal estar da civilização.

Corroborando o "efeito de verdade" que acompanha a literatura moderna desde a sua ascensão, que se processou em analogia com o realismo filosófico, a partir do século XVII (cf. Foucault, 1992; Goulemot, 1991; Watt, 1998), Marcelo Mirisola narra suas histórias em primeira pessoa, confundindo deliberadamente autor/narrador/personagem. Mesmo em entrevistas ele continua esse jogo. Também adota o pressuposto "da verdade" do que se diz como uma questão individual e, por todos os meios, procura enfatizar a originalidade, rejeitando qualquer pretensão de, através das situações particulares, emitir afirmações de caráter geral e universal. Como ator-personagem dá uma grande atenção à própria individualização. Também faz uma detalhada apresentação do contexto histórico, com vistas a dar verossimilhança à sua obra, apontando pessoas, situações reais, lugares e datas das décadas de 1970, 1980 e 1990. Ao longo de sua narrativa há a citação de um verdadeiro mosaico de nomes representativos da cultura pop, da política brasileira e dos esportes dessas décadas, como: Xuxa, Denise Bandeira, Monique Evans, Flávio Cavalcanti, Cid Moreira, presidente Ernesto Geisel, Presidente Figueiredo, D. Dulce, Nelson Piquet, Ayrton Senna.23

Embora procure criar uma estrutura narrativa não convencional, recortando-a, reordenando esses recortes, repetindo citações e trechos nos seus romances e contos, embaralhando e invertendo a noção de tempo pelo recurso do fluxo da consciência, ou mesmo de colagens,24 o resultado não é muito diferente dos romances convencionais.

O contexto da narrativa de Mirisola, como escreveu Scliar (2006) na revista Bravo em resenha do livro O Azul do Filho Morto, é a "geração classe média dos anos setenta e oitenta, que não conheceu a ditadura militar e que, portanto, não teve a luta contra a repressão como bandeira. É a geração da televisão e do vídeo game, a geração das drogas pesadas" Como o narrador de Mirisola diz, "a TV educava para o que era preciso, o resto aprendi olhando para baixo" (Mirisola, 2002, p. 29). Faz parte ainda desse contexto o imaginário do sexo erótico dos anos 1970, que desassociou a sexualidade da reprodução com o desenvolvimento dos métodos contraceptivos.

Todo esse contexto, herdeiro dos desdobramentos do movimento da contracultura, tornou o campo da sexualidade estreitamente ligado aos movimentos sociais, como o feminista e o de liberação homossexual. Sexo e reprodução cada vez mais se tornaram instâncias de decisão privada, embora orientado normativamente por regras públicas e por dispositivos disciplinares. Tal orientação incidiu sobre a Pessoa moderna, construindo-a como sujeito político e cidadão, mas também, definindo-a por sua sexualidade e experiência íntimas (Heilborn, 1999).

As transformações das práticas e das representações sociais vinculadas à sexualidade, envolvendo variados contatos corporais com diversas pessoas – do mesmo sexo ou não – e não mais restrita à procriação, abrem-se para uma intensa busca de satisfação e de excitação eróticas, a ponto de subverter o individualismo igualitário.25 Um dos caminhos é a identificação da sexualidade como estando inscrita no corpo sob a forma de um instinto sexual que impulsiona as ações, dando preeminência tanto à experiência dos sentidos como às sensações corporais. Nos romances de Mirisola esse campo de representações é atualizado e radicalizado ao extremo.26

Dos três livros analisados, o sexo é um dos elementos centrais, descrito com palavrões, situações obscenas e ofensas. Se, de imediato, o sexo parece mobilizar como um dos meios para dar sentido à vida do narrador e dos protagonistas, acaba reduzindo-se uma mercadoria reificada e fetichizada. Vivido com prostitutas, "mulheres cafajestes", travestis, lésbicas, gays, aleijados, empregadas domésticas e mongolóides, o sexo é, sempre, vendido e comprado. Também nas relações conjugais – quando ocorre – é visto como troca por outras formas de consumo, como viagens, por exemplo. Há, também, relações sexuais incestuosas entre irmãos, primos e primas. A ejaculação precoce e a masturbação são descritas em analogia às compras pelo crediário, ou pagas com cartão de crédito, pois a busca de satisfação do prazer, que deveria ser postergada por falta de dinheiro, acaba sendo realizada de imediato. Contudo, o fato de ser comprado não significa que o sexo deixe de funcionar como fonte de sensações intensificadas, tanto mais vivido quanto menos comprometido com a procriação. Vivido em relações que supõem enganos e mentiras recíprocas, sem amor, as sensações corporais experimentadas no sexo são descritas como uma profusão de fluxo e secreções – cuspe, esperma, sangue, urina, fezes – e como "uma experiência limite que pode levar deste mundo da mesma forma que nos trouxe" (Mirisola, 1998, p. 84). Aí, o cúmulo da bondade, ou compaixão, é o beijo na boca, nessas relações em que a intimidade é impossível, mesmo quando se fala de amor (Mirisola, 1998). A prostituta "que beija na boca é natureza fora do lugar, do lugar errado" (Mirisola, 1998, p. 47).

Esse tipo de experiência, como a evocada pelo narrador, pode ser qualificada como uma espécie de auto-sexualidade, como sugeriram André Béjin e Philippe Áries (1986). Coloca-se no mesmo plano o que ele denomina como "catalisadores sexuais" (que na narrativa aparece nas figuras das prostitutas, "mulheres cafajestes", travestis, lésbicas, gays, aleijados e mongolóides) por uma certa equivalência funcional e pela possibilidade indiscriminada de substituição de uns pelos outros. Totalmente egocêntrica, a sexualidade parece ser vivida e experimentada como não relacional, colocando em causa o individualismo igualitário pelas relações assimétricas, nas quais o outro é usado como objeto, consumido.

Combinando o exagero da encenação na descrição das relações sexuais com a indiferença e fazendo do sexo um meio pelo qual o narrador se mobiliza para obter intensas sensações corporais,27 mesmo assim segue afirmando que ele é irrelevante, nada tem de subversivo. Ao contrário, custa caro e, além disso, tem o depois: "causa filhos".

A existência de filhos do narrador e de outros personagens é, sempre, desqualificada por um futuro entrevisto de desenvolvimento da loucura e do homossexualismo. Mesmo os filhos "naturais" são tratados como adotados, sem atenção, ou são abandonados – como narra o protagonista que "deu um pé na bunda da mulher e nos filhos" (Mirisola, 2002, p. 41). Radicalizando a idéia do corpo como objeto, quando ocorre a gravidez, "conseqüência de contraceptivos inúteis", ela é vista como uma parte separável do corpo (Mirisola, 1998, p. 31) que pode ser "criada" ou "tirada" e a maternidade, quando aceita, é vista como algo que oferece terríveis ofertas: "veados", "obesos", "loucos" (Mirisola, 2002). No epicentro dessas relações sem troca, o resultado não poderia ser outro a não ser uma sensação de vertigem em um abismo de terror.

Há outros tipos de "filhos" do narrador: são aqueles gerados somente na imaginação, como fantasmas. Nem vivos, nem mortos, são dotados de nome, tem vida própria e, mesmo não nascidos, têm pai e mãe.

À inutilidade do corpo dada pelas práticas sexuais e sua encenação corresponde o desbordamento do corpo na figura do obeso e o "apagamento" do corpo pela deformidade física e mental, presentes na descrição tanto do narrador quanto dos personagens. O narrador se apresenta com um "corpo de 85 kilos", "com joelhos e articulações que foram para o beleléu", a "fraqueza dos velhos", o "cristal que vai rompendo os canais da urina" e a defecação na cama (Mirisola, 2000). Na maioria das vezes as mulheres são descritas como "cafajestes", "incapazes de dar leite", "gordas" e "descuidadas", com "manchas na pele", "unhas micosadas" e "estrias". Uma prostituta foi descrita como uma "dona de casa", "meio dentuça, com uma bunda modelo tanajura". Outra era "levemente corcunda e falava um português irrelevante". Como as mulheres, os homens são divididos em duas categorias que, às vezes, se sobrepõem uma a outra. São, além de "sádicos" e "viciados em sexo anal", aleijados, paralíticos e mongolóides. A junção dessa sexualidade estéril com corpos mal cuidados e deficientes, desafiando controles disciplinares, expõe a ambigüidade da representação do humano, pois o homem desfigurado tem um estatuto intermediário: não é doente, nem saudável, não está morto, nem plenamente vivo, não está fora nem dentro da sociedade (cf. Le Breton, 1992).

As relações do narrador com os personagens são feitas de mentiras recíprocas, que forjam "mau-caratismo" e a "falta de escrúpulos" (Mirisola, 2000, p. 76), de "canalhices", "fraquezas". O narrador comenta que conviveu 30 anos com o vizinho paralítico e não conseguiu fazer nenhuma amizade porque "resistir é não ter ninguém". Com a "sufirstada" a "aproximação é irrealizável", com o amigo garoto de programa, além das mentiras recíprocas, da "má-fé", do "engano" e da "desolação" daqueles que não escutam e nem entendem um ao outro, os únicos sentimentos que os uniam eram a "inveja" e a "raiva". O que ambos compartilhavam era "a mais sórdida e repulsiva intimidade".

Em O Azul do Filho Morto, o narrador, em estilo autobiográfico, descreve sua vida, começando desde a infância, quando "cavalgava em faxineiras", até a vida adulta, momento que trocou "sua vida de playboy interestadual por fraldas cagadas e crianças exibidas como troféus". Ter se casado, se transformado num "bunda mole", foi uma "questão de prioridade, uma vez que meus irmãos [do narrador] entravam em fase de reprodução e ninguém mais esperava nada desse vagabundo aí, que era eu mesmo". Chegando à "maturidade", tornou-se um "senhorzinho", de quem "as putas cobravam mais". O que sobrou foi "ressentimento broxado" e uns "pêlos brancos ao redor dos mamilos, tesão nenhuma". Descreveu sua família como unida por "laços de merda", pois a "avó não ia com a cara da mãe" e resolveu "dá-la" para uma tia. Sua mãe "maldizia o fruto do próprio ventre", "isso", que era ele. Seu avô "enrabava travestis" e seu pai, etéreo, vivia "enganando e sendo enganado por aí". Os irmãos eram uns mortos em vida. Por descrever a vida como inútil, sem valor, o narrador afirma que a "grande jogada seria se matar depois de velho, para se vingar plenamente".

Mas o avô morreu "velho". "Morreu com câncer chorando como um cabrito". O narrador descreveu o avô como amigo e confidente, mas também explorado por ele. No livro Fátima fez os Pés para Mostrar na Choperia essa morte foi descrita como uma injustiça, pois "tipos como ele, gente fina, deveriam morrer assassinados ou quiçá achados nus na Floresta da Tijuca, com indícios de violência física e abuso sexual". "Como as tragédias não são idealizadas como se quer, ele teve morte assistida, com piedade e compaixão, não merecida, pois não foi vítima de suas vítimas", ganhando dinheiro "em surdina", "enrabando travestis", seduzindo as noras e ostentando um "estomago nazista até a morte".

Se o suicídio na velhice seria uma vingança plena, o mesmo ato é a única coisa que estabelece a diferença entre as crianças e os animais: "a diferença entre a vida de uma criança com um pastor alemão é que eles, os bichos, não têm a opção do suicídio, que seria a única saída honesta para isto tudo". Para o narrador não seria, apenas, uma saída honesta, mas alcançar a felicidade, pois quem está vivo não sabe o que é isso.

O que acabei de expor nos remete à idéia não só da objetivação do corpo, mas também à excitação e exacerbação dos sentidos que vêm acompanhadas de uma forma de subjetivação apta para gerir situações e comportamentos para alcançá-las. No auge da indiferença, o narrador diz: "que se teve alguma liberdade foi a de ter fugido e jamais ter acreditado em coisa alguma". Sua "única liberdade foi voar sobre abismos", pois todas as suas relações foram reduzidas a relações com pessoas vistas como coisas e sua única saída, além da morte, seria o "privilégio do autismo, próprio dos mongolóides", visto como "quase uma santidade".

Essa forma de subjetivação remete à idéia do "homem sem substância". O narrador pede desculpas, mas diz que "a mentira, louca por uma vadiagem e outra putaria, corre desenfreada como se não tivesse nada a ver comigo" (Mirisola, 1998, p. 42). Muito próximo d'O Homem do Subsolo, de Dostoiévski (2000), com sua materialização da angústia, e sob um escancarado deboche da geração dos anos 1980 e 1990, o narrador recusa o "papel de adulto conselheiro que gosta das coisas como manda o figurino". Como escreve Scliar (2006), o narrador personifica a geração desamparada, que não encontra seu rumo. Assim como sua geração, ele vagueia pelo Brasil encontrando homens e mulheres, mas não consegue encontrar a si próprio, nem seu lugar no mundo. Vivendo "o castigo antes do crime", gostaria de se "excluir num autismo trivial e generoso", mas, ao contrário, sempre se coloca como alguém fazendo tipos, despossuído de si mesmo. Como o espectador desdobrado, descrito por Boltanski (1993), ele vê a si mesmo "fazendo tipos", que se alteram diante dele próprio e de seus personagens, buscando "um rosto para vestir, um rosto para usar".28 Seus personagens, como ele, são feios, mentirosos, obscenos. A única instância de controle parece ser o dinheiro…

A biotecnologia

A ironia blasé da narrativa de Mirisola, o amoralismo estético visível na descrição da feiúra, das brutalidades cruéis e do arbitrário desconcertante nos comportamentos dos personagens parece aproximar-se da satisfação reivindicada pela exigência de experimentar sensações corporais na vida prática e cotidiana. Mas essas sensações parecem lançadas na penumbra quando confrontadas com o universo da biotecnologia. Quais seriam, então, os princípios de inteligibilidade que unificariam esse tipo de narrativa literária – em que a vida parece inútil, os corpos são intratáveis e a dor é recrudescida por crueldades – a um conjunto de práticas e de controle sobre o corpo, como os verificados pela biotecnologia?

Atualmente, a biotecnologia encarna a esperança, antes formulada por Francis Bacon, de tornar "o homem um deus para o homem". Para esse filósofo e ensaísta do século XVI, essa esperança era encarnada nas "tentativas de prolongar a vida, curar os doentes ditos incuráveis, amortecer a dor, transformar o temperamento, a estatura e as feições, metamorfosear um corpo no outro e fabricar novas espécies" (Hottois apud Schramm et al., 2005, p. 104). O que haveria em comum entre essa configuração de idéias e significados suscitados pela biotecnologia e a narrativa de Mirisola em que as manifestações da natureza humana aparecem, ao mesmo tempo, como excesso e desperdício, mistura grotesca e monstruosa que parece remeter a uma estética do mal?

A antropologia contemporânea vem discutindo acerca dos efeitos e impactos da biotecnologia sobre as noções de "natureza humana", "natureza"/"cultura", "pessoa"/"organismo".29

Em um provocador ensaio sobre corpos genéticos e moleculares, Rabinow (1998) propõe denominar de bio-sociality uma configuração que envolve uma rede de conceitos e práticas de identidade através da qual emergiria um diferente tipo de autoprodução, vindo dos projetos do genoma humano, da biotecnologia, da indústria farmacêutica, das academias e das ciências governamentais. Embora a bio-sociality seja um desdobramento da sociobiologia, elas são contrastantes porque na segunda há uma antiga narrativa evolucionária antropocêntrica, típica do século XIX, análoga à visão de mundo da época.30 Para Rabinow, na bio-sociality, a natureza será modelada na cultura, entendida como prática, porque a "natureza" tem sido conhecida e refeita através da técnica, se tornando artificial, assim como a cultura está se transformando em natural.

Contudo, dentro da antropologia, a transformação da natureza é considerada como atividade intrinsecamente humana, na qual a Pessoa e o corpo "natural", em suas múltiplas formas, emergem como uma categoria maleável e situada. Essa idéia – que é mais ou menos o senso comum antropológico31 – difere muito da proposta analítica de Tim Ingold (1991), para quem a Pessoa é um organismo. Nesse senso comum, o corpo humano pode ser literalmente esculpido, transformado e alterado através das cirurgias plásticas, tatuagens e maquiagens definitivas; da alteração da cor e da forma da pele, dos cabelos. Essas alterações visariam realçar a beleza, aperfeiçoar o gênero por meio de transplantes, proteger contra as limitações da natureza e "des" ou "re" configurar, às vezes, permanentemente, o corpo e, conseqüentemente, a pessoa.

Emily Martin (1994) conclui que estamos diante de um corpo flexível, aberto e sem limites. Esses atributos em nada diferem das qualidades da Pessoa, requeridas para viver no mutante mundo da economia. Como pude observar e analisar em minha tese de doutorado (Silva, 1999), os produtores e transmissores dos saberes organizacionais constroem diversas significações da Pessoa, no contexto das relações de trabalho nas empresas, que convergem para um indivíduo "multifacetado", "integrado" e "flexível": o homo multiplex, assim designado em oposição ao homo duplex, analisado por Durkheim (1970).

Tais (re)configurações do corpo e da Pessoa indicam que a intersecção da natureza e da cultura está profundamente enraizada nas construções antropológicas do mundo, pois as atividades humanas formam essas construções. Qualquer tentativa de universalizar o corpo é, assim, quebrada, e dirigida etnocentricamente para definições de beleza e da otimização de suas formas. Desse modo, o que as práticas da biotecnologia vêm fazendo é contribuir para tornar profundamente problemáticas as construções do corpo humano e da natureza humana, mesmo que o limite entre natureza e cultura, entre natural e artificial esteja aparentemente seguro (cf. Stolcke, 2000).

Como lembrou Rabinow (1998), as novas tecnologias estão se combinando a novas formas de socialidade, envolvendo riscos diversos e contribuindo para produzir uma vívida problematização do corpo. Há uma tensão nesta emergente configuração entre a fragmentação do corpo em sua materialidade e o conseqüente (re)desenhamento dos limites fundamentais da humanidade. Assim, confirmando o insight de Marcel Mauss (2003) sobre as técnicas corporais, ele mostra como os debates em diferentes países sobre o direito dos indivíduos disporem de seus próprios corpos e suas partes oscilam entre a dignidade inerente e inalienável da pessoa e o direito de propriedade. Isto é, dos direitos de comercialização do próprio corpo e suas partes, o que fere os princípios da autonomia, do poder e do controle da Pessoa sobre si mesma.32

Nesses dois lados do debate a pessoa não está longe do ser racional e autônomo kantiano – e eu completo, dos valores próprios à ideologia individualista como liberdade, vontade e escolha. Tampouco está distante do ser vivo, um assunto humano existente. Como argumenta Rabinow, muito da controvérsia bioética contemporânea – um discurso situado em uma zona de confluência entre a lei e a política, a ciência e o moralismo, a sociedade e os indivíduos – refere-se aos não nascidos, ou àqueles no estágio final da vida, cujas capacidades mentais estão severamente limitadas. Os debates sobre o aborto, a eutanásia e as novas tecnologias reprodutivas, mediando definições do limite entre a vida e a morte, trazem questões que a ciência e a tecnologia ajudam a produzir, mas não estão aptas a resolver, como lembrava Weber ([s.d.]) na conferencia sobre a ciência como vocação.

Quanto às tecnologias reprodutivas, Naara Luna (2004), em uma etnografia recente, demonstra como elas ampliam a possibilidade do parentesco como escolha e não como resultado de processos inexoráveis, quando se trata da possibilidade de procriação de filhos biológicos na reprodução assistida. Aí a condição da Pessoa é identificada como um corpo e um genótipo humano e o feto como um agente individual separado da mãe,33 dotado de uma força vital biológica que é demonstrada na noção de viabilidade e de capacidade de nascer vivo. Essa força vital biológica não impede, contudo, que haja uma manipulação social das origens em busca de qualidades físico-morais requeridas pelos doadores. Aqui, a própria noção de natureza humana é relativizada em face da natureza humana construída em laboratório.

O quadro esboçado acima, mesmo de forma tão geral, permite circunscrever uma configuração de idéias que enfeixa a categoria que identifica o humano como ser vivo – diferente da categoria do organismo vivo, tributário dos desdobramentos da biologia como ciência na passagem da idade clássica para moderna. No "ser vivo" está incluída a secularização da idéia da sacralidade da vida, ainda vinculada ao significado do legado cristão da cultura ocidental pelos diversos atravessamentos que se interpõem sobre ela quando se coloca o significado último da existência. Isso é evidenciado no debate sobre as possibilidades de criar ou impedir a continuidade da vida por meios artificiais, a exemplo da fertilização in vitro e da eutanásia. A idéia de sacralidade da vida, porém, é mais radical, porque está vinculada também ao valor da vida individual naquela direção que radicaliza o culto do indivíduo, antes intuída por Durkheim (1995). Contribuindo para uma visibilidade positiva para identificar o "ser vivo", a natureza passa a ser percebida como artificial e adquirida, especialmente quando combinada à estetização do corpo, visto como plástico, flexível, fabricável e mutável, um meio de atingir um eu harmonioso, hedonista e belo. É bom lembrar que essa configuração ordena, sobretudo, muito mais um horizonte de esperanças e de expectativas do que propriamente sua cabal realização, embora, sem dúvida, como procurei demonstrar, tem implicado novas idéias e novas práticas.

O que haveria em comum entre essa configuração de idéias e significados suscitados pela biotecnologia e pela narrativa de Mirisola no tocante às manifestações da natureza humana?

Entre fronteiras móveis: a narrativa de Mirisola e a biotecnologia

O fundo comum são os paradoxos inerentes aos problemas suscitados na relação humano/artificial/natural no âmbito das experiências no campo da biotecnologia e da narrativa de Marcelo Mirisola, no que se refere às representações da corporeidade e da subjetivação da Pessoa: essas experiências remetem às noções do corpo como manipulável, corpos separados uns dos outros, a exemplo do feto que é separado do corpo, fora do útero materno; como também da idéia do sexo destituído, como ocorre há muito, da introjetada função de procriação. Desse modo, na relação humano/artificial/natural, os filhos são vistos como fruto da imaginação – mesmo que num caso sejam desejáveis e na narrativa de Mirisola não – bem como a reprodução assistida/artificial contrapõe-se à reprodução inútil/natural; as qualidades físico-morais envolvendo a artificialidade das práticas de laboratório e a pretensão de se estar delas liberto na vida cotidiana; o imperativo relacional atravessando as diversas práticas de otimização do corpo e a pretensão de estar livre das relações pessoais na busca de sensações corporais. Tais representações não só resultam de uma "visão de mundo" semelhante, mas estão inseridas em condições que impõem postulados dessa visão de mundo sobre os corpos e pessoas que, apesar de ambíguos, advêm de certa estrutura de pensamento, de valores e de significados dos quais não se pode escapar. Nos dois casos, a dimensão histórico-social é passível de ser analisada antropologicamente, de tal forma que podemos reconstituir parte do esperançoso horizonte ideológico da biotecnologia, redesenhando-a em seus vínculos com a ordem moral.34 Essa dimensão histórico-social está nas experiências da corporeidade/subjetividade, narradas nos livros de Mirisola como "sem direção" porque não se encaixam, violam ou ameaçam as categorias sociais nucleares para pensar o corpo e a Pessoa, relativas à otimização do corpo, ao prolongamento da vida e à liberdade individual. Tais categorias aglutinam, como pólos contrastantes, assimétricos e móveis, significados diversos e podem ser sintetizadas, por um lado, na categoria do "ser vivo" (dada a predominância da biotecnologia) e, por outro, na categoria do "ser humano" (advinda da incerteza sobre o humano).

Contestando simultaneamente a estetização do corpo e as intervenções da biotecnologia, as narrativas de Mirisola nos ajudam a enxergar o "entre" do ponto de intersecção que está no limiar da morte/vida dos corpos, do humano/natural/artificial, da inutilidade/utilidade do corpo e do eu soberano/despossuído de si mesmo. Na biotecnologia, a categoria do humano se expressa na sua identificação como "ser vivo", como no projeto do genoma humano, nas técnicas de fertilização in vitro, nas reparações clínicas e estéticas, na assistência médica à morte, nas dietas alimentares. Na literatura, identificamos as noções de corporeidade/subjetividade como intratáveis, indóceis e informes. As figuras intersticiais que emergem nessas narrativas são marcadas em diferentes figuras da sexualidade – a homossexualidade, a bissexualidade, o incesto, como também na infertilidade e na comercialização do corpo. No corpo, a obesidade, a magreza excessiva, a velhice, a "anormalidade" física e mental e, na pessoa, o eu despossuído de si mesmo.

Desse modo, a experimentação nos romances do rearranjo dos diversos significados subjacentes à configuração aglutinadoras da categoria "ser vivo" e "ser humano" resultam em construções dos corpos/sujeitos que apontam para a categoria de um ser disforme. Esse ser disforme ganha visibilidade, sobretudo, através das "perturbações" consideradas como impuras, infames, malditas, como se observa no quadro a seguir.

As encenações desse entre-dois imaginado, construindo o ser disforme, como identificado na narrativa de Mirisola, parecem ser comuns nesse tipo de literatura contemporânea,36 como observou Kristeva (1980). Esse "ser disforme" seria um ser abjeto, sem lugar próprio, errante nas fronteiras móveis entre os significados das configurações do "ser vivo" e do "humano". Dentro da cultura, mas fora da lei, esse ser disforme é expressão da mobilidade das fronteiras classificatórias entre natureza e cultura e entre o início e o fim da vida, atualizados nas representações do corpo e dos sujeitos. O processo de definição das fronteiras da individualização do narrador não encontra nenhum tipo de coerção – a não ser o poder do dinheiro – resultando em coisificação das pessoas no processo relacional.

Na antropologia, Mary Douglas ([s.d.]) evidenciou em seus estudos que a noção de impuro é uma ofensa contra uma ordem classificatória. Quando se tenta eliminar essa ordem, não fazemos um gesto negativo, mas ao contrário, esforçamos-nos positivamente para organizar o nosso meio. Desse modo, e como uma espécie de grau zero da vitalidade da condição humana, as fezes, o cuspe, o esperma, o sangue, as sobras das unhas aparecem de modo ambíguo entre o eu e o outro, o vivo e o morto, o dentro e o fora. Intersticiais, essas secreções corporais são, assim, também reveladoras do atravessamento das fronteiras entre esses pólos opostos, nem sempre simétricos e invertidos, das categorias do "ser vivo" e "do ser humano".

A própria obscenidade, que não se restringe à pornografia e ao erotismo, está expressa na subjetivação do narrador e dos personagens, envolvendo essas secreções e excrescências na coisificação das relações sexuais, tornando-se, assim, expressão ritual do isolamento.

Tal isolamento, advindo da constante mentira e engano, da recusa de tudo, da negação dos valores e da insistência nas abjeções, encarna, também, a figura do maldito pela violação da proibição, tal com argumentou Bataille (1998) sobre o mal na literatura. É a experimentação de momentos vertiginosos em que parece que narrador é separado e escapa a tudo que o limita. O que subsiste dos personagens é, sempre, a indiferença ou a negação. Como Bataille (1998) sugeriu, a negação dos outros, ao extremo, torna-se, também, a negação de si.

Essa indiferença entre o narrador e os outros, contudo, desaparece quando o outro, ao ser comprado, é reduzido a um objeto de prazer. Em homologia com os corpos atravessados pelas técnicas das biotecnologias e das cirurgias estéticas, o substrato comum é a idéia de uma corporeidade inacabada, aberta à manipulação, segundo os interesses do narrador. Dando visibilidade aos corpos que não devem se expor, escondidos ou sendo apagados da vida cotidiana, o efeito é atualizar um tipo de violência simbólica contra os corpos inúteis das inúmeras práticas de sexualidade estéril e contra os corpos deficientes, velhos e obesos, como sugeriu Le Breton (1992). Tanto o corpo estéril, comprável, quanto o limitado pelas capacidades físicas e mentais adquirem esse significado porque desestabilizam a segurança ontológica não só da ordem simbólica relativa à família, à reprodução, à sexualidade, à morte e ao significado da vida comum, mas também porque desestabilizam valores como a autonomia, a vontade e a escolha, tão caros à ideologia individualista ocidental.

Estamos aqui no centro da tematização da família elaborada por Foucault (1977, 2001), que mostrou a tendência de substituir o dispositivo da aliança pelo da sexualidade, quando a temática religiosa da carne passou a dizer respeito ao corpo, às sensações, aos mais secretos movimentos de concupiscência. É também nesse contexto que o incesto é permanentemente requisitado, forma pela qual se deseja manter o dispositivo da aliança na família. Do mesmo modo, o dispositivo da sexualidade constrói figuras como a mãe indiferente, o jovem homossexual, o onanismo, a masturbação, a loucura e todos os comportamentos polimorfos da perversidade consolidados no corpo e no prazer. Tal sexualização da família é que dará origem ao "anormal", na figura do indisciplinado, que foi antecedido pelo monstro judiciário e pelo masturbador, como esse autor sugeriu.

É importante retomar essa herança do monstruoso enquanto representação do anormal, ou do seu deslizamento para a idéia dos seres disformes. Do ponto de vista da filosofia da estética, trata-se de noções que se ligam, primeiro, ao horror, e depois ao grotesco. O horror advém das reações suscitadas diante de objetos ou seres considerados impuros, como lembra Mary Douglas ([s.d.]), porque são categorialmente intersticiais, contraditórios, incompletos ou informes. É também mistura do que normalmente é distinto. Por sua vez, o grotesco é uma categoria estética que indica uma combinação insólita e exasperada de elementos heterogêneos, com referencia freqüente aos deslocamentos escandalosos de sentido (cf. Kayser, 2003). Tanto em um caso quanto noutro, observamos que o objeto particular do horror do artístico é um pensamento, como demonstrou Carrol (1999, p. 47).37 Na mesma direção podemos compreender a idéia de Jeudy (2002), de que o grotesco oblitera bruscamente o intelecto, torna o mundo estranho, faz com que as categorias do nosso mundo falhem.

Tal estrutura de pensamento, tanto do horror quanto do grotesco, também é apontada por Lévi-Strauss (cf. Charbonnier, 1989) como estrutura própria à obra de arte em geral. Se a arte é o signo do objeto e não sua representação literal, ela manifesta sua estrutura, imperceptível imediatamente no objeto. Colocada no mesmo plano das narrativas míticas, com as ressalvas necessárias, Lévi-Strauss afirma que a arte é quase um aprendizado da realidade. Para ele, existe uma homologia entre a estrutura do significado e do significante. A arte permite realizar um modo de conhecimento justamente porque faz explodir essa relação entre significante e significado, numa operação que ele denomina de fissão semântica (cf. Charbonnier, 1989). Isto é, separa, em proveito de uma fusão imprevista, um outro significante e um outro significado num reajuste que não estava no domínio do possível. É a síntese da representatividade e não a representatividade em si (Lévi-Strauss, 1997).

Pode-se afirmar que há nas estratégias narrativas de Mirisola uma deliberada intenção de suscitar, por meio do deboche e do cinismo, o horror. Também poderíamos concluir que nelas o grotesco estaria presente tanto nas descrições das relações sexuais com idosos e deficientes mentais quanto pela mistura da sexualidade com o dinheiro ou com a troca por mercadorias. É justamente no deboche que ocorre a associação com o que provisoriamente poderíamos chamar de estética do mal, não no sentido moral ou político, mas naquele mal capaz de suscitar, além da negação de si e do outro pela indiferença, a crueldade. Também não seria qualquer crueldade, mas a crueldade melancólica, do enlutado sem a experiência do luto (cf. Dias; Glenadel, 2004), ou, nas palavras do narrador, fazendo um trocadilho com o título de Dostoiévski, aquela crueldade experimentada como um "castigo antes do crime".

Aliás, como sugeriu Foucault (1992), essa seria a ética imanente do discurso literário no Ocidente, desde o século XVII: a busca do que é mais difícil de captar, o mais oculto, o que é mais trabalhoso dizer e mostrar, o que é o proibido ou escandaloso. O que não é apreendido pelo discurso médico-psiquiátrico nem pelo discurso jurídico38 se instaura na literatura que, em seu compromisso com a verdade, se oferece como artifício, comprometendo-se a produzir efeitos de verdade que são, como tais, perceptíveis. Ela permanece, ainda, mais que qualquer outra forma de linguagem, sendo o discurso da infâmia, de dizer o indizível, o pior, o mais secreto, intolerável, vergonhoso. Essa posição singular da literatura, contudo, não seria mais que um dispositivo de poder que atravessa a economia de outros discursos.39

Sob esse prisma, a narrativa de Mirisola poderia ser tomada como um observatório etnográfico das versões eruditas, não de uma indolicidade refletida, hipótese que eu adotava sob a inspiração das análises Foucault, mas das tensões entre configurações de significados que enfeixam as categorias do "ser vivo" e do "ser humano", cuja síntese semântica não é facilmente alcançável, nem mesmo pelo "ser disforme". Essas tensões, suscitadas pela ambigüidade das experiências vividas envolvendo os corpos e os sujeitos na nossa cultura, operam ao mesmo tempo nessa zona de indistinção entre a sacralidade versus a precariedade que as envolvem. Agamben (2002) sugere o termo latino homo sacer para expressar essa ambigüidade, ao mesmo tempo, do que é santo e maldito, como também mostra o conteúdo dessa ambigüidade no sagrado tanto na antropologia francesa quanto na antropologia vitoriana, quando se disseminou a noção etnográfica do tabu no estudo da religião. Mesmo incluindo Durkheim no desconforto da burguesia culta européia em relação ao fenômeno religioso, Agamben o retoma na sua tematização da ambigüidade da noção do sacro: a demonstração de que o puro e o impuro não são dois gêneros separados, mas duas variedades do mesmo gênero que compreende as coisas sacras. Para além da biopolítica tematizada por Foucault, em que a "vida natural" passou a ser incluída nos mecanismos e cálculos do poder, e em que a questão política é a vida do homem como ser vivente, Agamben demonstra que, no ponto de intersecção entre as técnicas de individualização e os dispositivos de poder totalizantes, a vida biológica tornou-se decisiva justamente por criar, aí, uma zona de irredutível indistinção. A sacralidade da vida, que se desejaria fazer valer contra o poder soberano, como um direito humano em todos os sentidos fundamentais, expressaria – em sua origem – justamente seu contrário: a sujeição da vida a um poder de morte. Elemento político originário, a vida nua, ou sacra, constitui uma zona de indiferença no transito contínuo entre a natureza e cultura, lugar, portanto, dos princípios de inteligibilidade que unificam as questões candentes envolvidas na representação da natureza humana na biotecnologia e na narrativa de Mirisola. Não será por isso que paira a suspeita que estamos diante do que, aos nossos olhos, "ainda" não é humano?

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