Quinta, 4 de setembro de 2008, 08h01 Atualizada às 08h25
"Cujo", de novo
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Sempre que é o caso, digo com a maior franqueza que não conheço nada sobre o tema (o que às vezes é exagero). Direi, então, de novo, que pouco ou nada sei de lingüística histórica, embora tenha lido coisinhas aqui e ali sobre o amplíssimo tema (até livros inteiros e bons artigos, mas insuficientes para que eu possa opinar com bons fundamentos sobre a maioria dos casos).
Repito isso porque vou falar de novo, um pouco, do pronome "cujo", questão mencionada aqui recentemente, a propósito de um texto do prof. Pasquale. É que deparei com dois casos interessantes.
Parte de uma notícia de jornal informando que autoridades mudaram o status de parentes nomeados para o serviço público (César Maia criou uma sub-secretaria para manter uma irmã servindo ao município do Rio de Janeiro e Roberto Requião duas secretarias extraordinárias, salvo engano, para que o Paraná progrida cada vez mais com o concurso de sua esposa e de um irmão...) dizia:
Maristela, cujo nome da nova pasta não foi definido, foi nomeada por decreto na quarta-feira... (Folha de S. Paulo de 27/8/2008, p. A 11)
Num texto de Authier-Revuz ("Palavras mantidas à distância", trad. de Heloisa Monteiro Rosário, em Entre a opacidade e a transparência, Porto Alegre: Edipucrs) que estamos lendo em um curso neste semestre, encontrei
... X pode tomar os valores e "dizer" as modalidades mais diversas, as glosas veladas cujas aspas podem ser o indicador
O pronome "cujas" do segundo exemplo deve claramente ser substituído por "das quais" ("das quais as aspas podem ser um indicador"). É que o texto significa que as aspas podem ser o indicador das glosas veladas. "Das quais" deve referir-se, ou retomar, às "glosas veladas", para fazer sentido. Não pode haver aspas em glosas veladas, por definição. Glosas veladas equivalem a glosas implícitas, ou seja, não expressas, e não há como haver aspas em um implícito. Ou seja: as aspas indicam glosas veladas, são indicações de glosas veladas (delas, das quais).
Se lemos o primeiro exemplo ao pé da letra, "cujo" parece que deve referir-se a Maristela. Mas é claro que isso não faz sentido, porque não é Maristela que não tem ainda seu nome definido, e sim a Secretaria que ela vai ocupar. O jornalista deveria ter escrito algo como "Maristela, cuja secretaria ainda não tem nome definido" etc.
O que esses dois casos indicam? São um sintoma, um indício, de que o emprego de "cujo" está se tornando difícil. As tentativas de usar essa forma já rara podem dar com os burros n'água. Como está sendo cada vez menos usada, os falantes têm um domínio efetivo cada vez menor da regra. Estudam o caso na escola, fazem alguns exercícios, mas isso dificilmente faz com que o domínio da construção seja eficaz. Mal comparando, é como tentar escrever em inglês depois de algumas aulinhas de the book is on the table.
Comecei dizendo que não tenho pudor em confessar que não conheço determinados assuntos. Um é a história exata do cujo em português. Andei buscando algumas fontes e encontrei exemplos antigos no Google, do tipo "Cujas sõ estas coroas tã esplandecentes?" e "Cujo filho és?"
Duvido que os defensores do ensino de "cujo" na escola, os que acham que sem ele a língua perde muito, defendam o ensino do uso exemplificado por essas duas ocorrências, nas quais "cujo" significa "de quem", como hoje, mas é empregado em contextos sintáticos em que não ocorre mais, nem nas páginas dos que ainda o usam abundantemente e sem problemas.
A pergunta óbvia é: se podemos viver e falar sem esse emprego de "cujo", por que teríamos problemas se e quando ele fosse abandonado de vez?
PS - Por indicação, li um post de Caetano Veloso sobre lingüistas. É mais ou menos como se eu falasse de música. Atesta usos que todos conhecemos e que, segundo ele, teriam sido considerados inexistentes pela autora de um livro que ganhou quando fez um show na Unicamp, mas que depois perdeu (queria ver, pois duvido que esse livro exista, tal como ele o recorda) etc. Atira em todas as direções, sempre impreciso. Defende a escrita, como se precisasse, e considera positivos fenômenos como o sucesso do prof. Pasquale. Cujo nome grafa Pasquali. O que resume o post.
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