quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O Capital, obra com status de literatura


Irônico, perfeccionista, Marx escreveu um texto que pode ser lido também como romance ou tragédia

Francis Wheen

Em fevereiro de 1867, pouco antes de entregar o primeiro volume de O Capital aos editores, Karl Marx compeliu Friedrich Engels a ler A Obra-Prima Ignorada de Honoré de Balzac. A história era, em si, uma pequena obra-prima, disse ele, "cheia da mais deliciosa ironia." Não sabemos se Engels seguiu o conselho. Se o fez, certamente terá percebido a ironia, mas pode ter se espantado de que seu velho amigo houvesse se deleitado com ela. A Obra-Prima Ignorada é a história de Frenhofer, um grande pintor que passa 10 anos trabalhando e retrabalhando um retrato que revolucionará a arte ao oferecer "a mais completa representação da realidade". Quando seus colegas artistas Poussin e Porbus são enfim autorizados a conferir a tela acabada, eles ficam estarrecidos ao ver uma maçaroca de formas e cores aleatórias superpostas em grande confusão. "Ah!" grita Frenhofer, sem entender a estupefação dos amigos. "Vocês não haviam antecipado tamanha perfeição!" Mas aí ele entreouve Poussin dizendo a Porbus que Frenhofer acabaria descobrindo a verdade - o retrato havia sido repintado tantas vezes que não restara nada.

"Nada na minha tela!" exclama Frenhofer, olhando alternadamente para os dois pintores e para o quadro.

"O que você fez?" diz Porbus em voz baixa a Poussin.

O velho agarra com rudeza o braço do jovem, e lhe diz: "Você não vê nada ali, palhaço!patife! incrédulo! cão! Mas o que o trouxe aqui, então? - Meu bom Portus," ele continua, virando para o pintor mais velho, "será possível que você, até você, esteja zombando de mim? Responda-me! Sou seu amigo; diga-me, estraguei a minha pintura?" Portus hesita, ele não ousa falar; mas a ansiedade estampada no rosto lívido do velho era tão angustiante que ele aponta para a tela dizendo: "Veja!" Frenhofer olha atentamente a pintura por um instante e cambaleia.

"Nada! Nada! E eu trabalhei durante dez anos!" Ele desaba numa cadeira e chora.

Depois de expulsar os dois homens do estúdio, Frenhofer queima todos os seus quadros e se mata.

Segundo o genro de Marx, Paul Lafargue, o conto de Balzac "causou uma grande impressão nele porque era, em parte, uma descrição de seus próprios sentimentos." Marx havia labutado por muitos anos na sua obra-prima ignorada, e durante essa longa gestação sua resposta habitual aos que pediam para dar uma olhada na obra em progresso era idêntica à de Frenhofer: "Não, não! Ainda preciso dar alguns retoques finais. Ontem, ao anoitecer, achei que estava pronta... Esta manhã, à luz do dia, percebi meu erro." Em 1846, quando o livro já havia estourado o prazo, Marx escreveu a seu editor alemão: "Não permitirei que ele seja publicado sem revisá-lo de novo, tanto com respeito à matéria como ao estilo. Nem é preciso dizer que um escritor que trabalha continuamente não pode, ao cabo de seis meses, publicar palavra por palavra o que escreveu seis meses antes." Doze anos depois, ainda longe da conclusão, ele explicou que "é preciso avançar muito devagar porque mal decidimos finalmente expor temas aos quais dedicamos anos de estudo, eles começam a revelar novos aspectos e precisam ser mais bem pensados." Perfeccionista obsessivo, ele estava sempre procurando novos matizes para a sua paleta - estudando matemática, aprendendo sobre o movimento das esferas celestes, estudando russo por conta própria para ler obras sobre o sistema fundiário do país.

Ou, citando Frenhofer mais uma vez: "Ai de mim! Pensei por um momento que minha obra estava acabada; mas certamente me equivoquei em alguns detalhes, e minha mente não repousará enquanto não houver dissipado minhas dúvidas. Resolvi viajar e visitar Turquia, Grécia e Ásia em busca de modelos para comparar minha pintura à Natureza em diferentes formas." Por que Marx recorda o conto de Balzac no momento exato em que estava se preparando para revelar sua obra maior ao escrutínio público? Recearia que também ele houvesse trabalhado em vão, que sua "representação completa da realidade" se mostraria ininteligível? Ele seguramente teve algumas dessas apreensões - o caráter de Marx era um curioso misto de feroz autoconfiança e angustiada falta de confiança em si - e ele tentou se antecipar à critica advertindo, no prefácio, que "imagino, é claro, um leitor que esteja disposto a aprender algo novo e, portanto, a pensar por si mesmo." Mas o que nos deve chocar mais forçosamente na sua identificação com o criador da obra-prima ignorada é que Frenhofer é um artista - não um economista político, nem tampouco um filósofo, um historiador, ou um polemista.

A "ironia mais deliciosa" em A Obra-Prima Ignorada, observada pelo escritor americano Marshall Berman, é que a narrativa que Balzac faz da pintura é uma descrição perfeita de uma pintura abstrata do século 20 - e o fato de que ele não poderia ter sabido disso aprofunda a ressonância. "A questão é que onde uma época vê apenas caos e incoerência, uma época posterior ou mais moderna pode descobrir significado e beleza", escreveu Berman. "Assim, a real incompletude da obra posterior de Marx pode fazer contato com nosso tempo de um modo que obras mais "acabadas" do século 19 não conseguem: O Capital chega mais longe que obras bem acabadas do século de Marx no modernismo descontínuo do nosso." Como Frenhofer, Marx era um modernista avant la lettre. Seu famoso relato de deslocamento no Manifesto Comunista - "tudo que é sólido se desmancha no ar" - prefigura os homens ocos e a cidade irreal descrita por T. S. Eliot, ou "As coisas se desfazem; o centro não se sustenta" de W. B. Yeats. Na época em que escreveu O Capital, ele estava avançando além da prosa convencional para uma colagem literária radical - justapondo vozes e citações de mitologia e literatura, relatórios de inspetores fabris e contos de fadas, ao modo dos Cantos de Ezra Pound ou A Terra Desolada de Eliot. O Capital é dissonante como Schoenberg, angustiante como Kafka.

Marx se considerava um artista criativo, um poeta da dialética.

"Agora, com respeito à minha obra, devo lhe dizer a pura verdade sobre ela", escreveu ele a Engels em julho de 1865. "Quaisquer que sejam as insuficiências que possam conter, a vantagem de meus escritos é que eles são um todo artístico." Ele olhava mais para poetas e romancistas do que para filósofos e ensaístas políticos em busca de insights sobre as motivações e interesses materiais das pessoas: numa carta de dezembro de 1868, copiou uma passagem de outra obra de Balzac, O Cura da Aldeia, e perguntou se Engels poderia confirmar o quadro descrito com seu próprio conhecimento de economia prática. Se tivesse desejado escrever um tratado econômico convencional , ele o teria feito, mas sua ambição era muito mais audaciosa. Berman descreve o autor de O Capital como "um dos grandes gigantes atormentados do século 19 - ao lado de Beethoven, Goya, Tolstoi, Dostoievski, Ibsen, Nietzsche, Van Gogh - que nos enlouquecem, como enlouquecem a si mesmos, mas cuja agonia gerou tanto do capital espiritual de que ainda vivemos." E no entanto, quantas pessoas pensariam em incluir Marx numa lista de grandes escritores e artistas? Mesmo em nossa era pós-moderna, a narrativa fragmentada e a descontinuidade radical de O Capital são tomadas, por muitos leitores, por informidade e incompreensibilidade.

Quem estiver disposto a se atracar com Beethoven, Goya, ou Tolstoi, deveria ser capaz de "aprender algo novo" com uma leitura de O Capital - quando menos porque seu tema ainda rege nossas vidas. Berman pergunta: como O Capital pode terminar enquanto o capital continuar vivo? É conveniente que Marx não tenha completado sua obra-prima. O primeiro volume foi o único a sair durante sua vida, e os volumes subseqüentes foram montados por outros depois de sua morte, baseados em notas e esboços encontrados em seu estúdio. A obra de Marx é tão incompleta - e por isso tão resistente - quanto o próprio sistema capitalista.

Embora O Capital seja geralmente classificado como obra de economia, Marx só se dedicou ao estudo da economia política depois de muitos anos preparativos em filosofia e literatura. São esses alicerces intelectuais que sustentam o projeto, e é sua experiência pessoal de alienação que empresta tanta intensidade à análise de um sistema econômico que aliena as pessoas umas das outras e do mundo em que habitam - um mundo em que os humanos são escravizados pelo poder monstruoso de capital e mercadorias.

Marx foi um estrangeiro desde a hora do seu nascimento, em 5 de maio de 1818 - um menino judeu numa cidade predominantemente católica, Trier, dentro de um Estado prussiano cuja religião oficial era o protestantismo evangélico. Embora a Renânia houvesse sido anexada pela França durante as guerras napoleônicas, três anos antes de seu nascimento ela foi reincorporada à Prússia Imperial e os judeus de Trier ficaram sujeitos a um édito que os proibia de praticar profissões: o pai de Karl, Heinrich Marx, teve que se converter ao luteranismo para trabalhar como promotor. O pai encorajou Karl a ler vorazmente. O outro mentor intelectual do menino foi o amigo de Heinrich, barão Ludwig von Westphalen, um funcionário do governo, culto e liberal, que introduziu Karl à poesia e à música (e a sua filha Jenny, futura senhora Karl Marx). Em longas caminhadas juntos, o barão recitava passagens de Homero e Shakespeare que seu jovem companheiro aprendia de cor - e mais tarde usou como temperos fundamentais em seus próprios escritos.

Na vida adulta, Marx reencenou aquelas alegres caminhadas com von Westphalen declamando trechos de Shakespeare, Dante e Goethe enquanto conduzia a própria família em piqueniques dominicais em Hampstead Heath. Havia uma citação para cada ocasião: para esmagar um inimigo político, animar um texto árido, intensificar uma piada, autenticar uma emoção - ou insuflar vida a uma abstração inanimada, como quando o próprio capital fala na voz de Shylock (no volume um de O Capital) para justificar a exploração de trabalho infantil em fábricas.

"Operários e inspetores fabris protestavam com fundamentos higiênicos e morais, mas o Capital respondeu: Que os meus atos me caiam sobre a cabeça. Só reclamo a aplicação da lei. A pena justa prescrita na letra já vencida." Para provar que o dinheiro é um nivelador radical, Marx cita um discurso de Timon de Atenas de Shakespeare sobre o dinheiro como "a prostituta comum da humanidade", seguido de outro de Antígona de Sófocles ("Dinheiro! O dinheiro é a maldição do homem, nenhum é maior!/ É o que arruína cidades, expulsa homens de casa, / Tenta e desilude a alma mais bem intencionada, /Apontando o caminho para a infâmia e a vergonha...") Economistas com categorias e modelos anacrônicos são comparados a Dom Quixote, que "pagou a pena por imaginar erroneamente que a cavalaria andante era igualmente compatível com todas as formas econômicas da sociedade." As ambições iniciais de Marx eram literárias. Quando estudava Direito na Universidade de Berlim, ele escreveu um volume de poemas, um drama em versos, e até um romance, Escorpião e Félix, influenciado pelo romance altamente digressivo de Laurence Sterne, . Depois desses experimentos, ele admitiu a derrota: "De repente, como se por um toque de mágica - oh, o toque foi no início um golpe abalador - eu vislumbrei o reino distante da verdadeira poesia como um palácio de fadas longínquo, e todas minhas criações desmoronaram em nada... Uma cortina descera, meu santo dos santos fora dividido, e novos deuses teriam de ser instalados."

Como Marx havia sofrido algum tipo de colapso, seu médico lhe ordenou que se retirasse para o campo para um longo repouso - em conseqüência do qual ele finalmente sucumbiu à voz de sereia de G.W.F. Hegel, o recém-falecido professor de filosofia de Berlim, cujo legado era objeto de intensa disputa entre colegas estudantes e lentes. Na universidade, Marx "adotou a prática de fazer resumos de todos os livros que lia" - um hábito que jamais perdeu. Uma lista de leitura desse período mostra a abrangência precoce de suas explorações intelectuais. Enquanto escrevia um trabalho sobre a filosofia do Direito, ele fez um estudo detalhado da História da Arte de Winckelmann, começou a estudar inglês e italiano por conta própria, traduziu a Germânia de Tácito e a Retórica de Aristóteles, leu Francis Bacon, e "gastei um bom tempo com Reimarius, a cujo livro sobre os instintos artísticos de animais apliquei minha mente com prazer." Foi esse mesmo estilo de pesquisa, eclético, onívoro e freqüentemente tangencial, que deu a O Capital sua amplitude extraordinária de referências.

Quando estudante, Marx era apaixonado por Tristam Shandy, e 30 anos depois ele encontrou um tema que lhe permitiu imitar o estilo solto e desconjuntado de que Sterne fora pioneiro. Como Tristam Shandy, O Capital está repleto de paradoxos e hipóteses, explicações abstrusas e excentricidades, narrativas fragmentadas e estranhezas. De que outra forma ele poderia fazer jus à misteriosa e muitas vezes confusa lógica do capitalismo? "O que te importa o que as pessoas murmuram aqui?" pergunta Virgílio a Dante no Canto 5 do Purgatório. "Segue-me e deixa as pessoas falarem." Na falta de um Virgílio para guiá-lo, Marx emenda a linha em seu prefácio para o primeiro volume de O Capital para advertir que não fará concessões aos preconceitos alheios: "Agora, como sempre, minha máxima é aquela do grande florentino: Segui il tuo corso, e lascia dir le genti (Segue o teu caminho, e deixa as pessoas falarem)." Desde a origem, portanto, o livro é concebido como uma descida às regiões inferiores, e mesmo no meio de complexas abstrações teóricas, ele transmite um senso vívido de lugar e movimento: "Vamos, pois, deixar esta região barulhenta do mercado, onde tudo que ocorre é feito à plena vista de todos, onde tudo parece aberto e franco. Seguiremos o dono do dinheiro e o dono da força de trabalho ao cerne oculto da produção, cruzando o limiar do portal no alto do qual está escrito, 'Entrada proibida exceto para negócios'. Aqui descobriremos, não só como o capital produz, mas também como ele próprio é produzido. Descobriremos, enfim, o segredo da geração da mais-valia."

Os antecedentes literários dessa jornada são freqüentemente relembrados à medida em que ele prossegue em seu caminho. Descrevendo fábricas de palitos de fósforo inglesas, onde metade dos trabalhadores são crianças e adolescentes (alguns com apenas seis anos até) e as condições tão estarrecedoras que "somente a parte mais miserável da classe trabalhadora, viúvas meio mortas de fome etc., entregam seus filhos a elas", ele escreve: "Com um dia de trabalho variando de 12 a 14 ou 15 horas, trabalho noturno, horários de refeição irregulares, e refeições feitas geralmente nos próprios locais de trabalho, pesteado de fósforo, Dante teria descoberto que os piores horrores de seu Inferno são superados nesta indústria." Outros infernos imaginados oferecem novos ornamentos para seu quadro da realidade empírica: "Da multidão variada de trabalhadores de todos os ofícios, idades e sexos que se amontoam ao nosso redor com mais premência que as almas dos assassinados em volta de Ulisses, vamos selecionar mais duas figuras, cujo contraste chocante comprova que todos os homens são iguais perante o capital - uma modista de chapéus e um ferreiro." Isso é o gancho para uma história sobre Mary Anne Walkley, uma moça de 20 anos que morreu "de puro excesso de trabalho" depois de trabalhar por mais de 26 horas moldando chapéus para os convidados de um baile oferecido pela princesa de Wales em 1863. Sua empregadora ("uma dama com o agradável nome de Elise", como observa Marx ironicamente) ficou consternada ao descobrir que ela havia morrido sem terminar a peça que estava costurando. Há uma textura dickensiana em boa parte de O Capital, e Marx faz acenos explícitos ocasionais ao autor que ele amava. Eis, por exemplo, como ele esmaga os apologistas burgueses que afirmavam que suas críticas a aplicações particulares da tecnologia o revelam como um inimigo do progresso social que não quer absolutamente que as máquinas sejam usadas: Este é precisamente o raciocínio de Bill Sikes, o célebre degolador.

"Cavalheiros do júri, com certeza a garganta desse viajante comercial foi cortada. Mas isso não foi culpa minha, foi culpa da faca. Será que devemos, por esse inconveniente temporário, abolir o uso da faca? Considerem só! Onde estariam a agricultura e o comércio sem a faca? Ela não é tão salutar em cirurgia como hábil em anatomia? E uma auxiliar desejável na mesa festiva? Se abolirem a faca - vocês nos atirarão de volta às profundezas da barbárie." Bill Sikes não faz esse discurso em Oliver Twist: trata-se de uma extrapolação satírica de Marx. "Eles são meus escravos," ele diria, às vezes, gesticulando para os livros nas suas estantes, "eles devem servir à minha vontade." A tarefa dessa força de trabalho não remunerada era fornecer matérias-primas que seriam moldadas para seus próprios fins. "Sua conversa não corre num sulco, mas ela é tão diversificada quanto os volumes nas estantes de sua biblioteca", escreveu um entrevistador do Chicago Tribune que visitou Marx em 1878.

Em 1976, S. S. Prawer escreveu um livro de 450 páginas dedicado às referências literárias de Marx. O primeiro volume de O Capital rendeu citações de Bíblia, Shakespeare, Goethe, Milton, Voltaire, Homero, Balzac, Dante, Schiller, Sófocles, Platão, Tucídides, Xenofonte, Defoe, Cervantes, Dryden, Heine, Virgílio, Juvenal, Horácio, Thomas More, Samuel Butler - além de alusões a contos de horror, novelas românticas inglesas, baladas populares, canções e jingles, melodrama e farsa, mitos e provérbios.

O que possui status literário em O Capital? Marx sabia que não poderia persuadir com material de segunda mão, pela mera exibição de flores alheias. No volume um ele zomba daqueles economistas que "escondem sob um desfile de erudição histórica e literária, ou com uma mistura de materiais estranhos, seu sentimento de impotência científica e a consciência sinistra de ter de ensinar a outros o que eles mesmos sentem que é um assunto verdadeiramente estranho." Um medo de que ele próprio pudesse ter cometido essa ofensa pode explicar a admissão angustiada, no posfácio de sua segunda edição, de que "ninguém pode sentir as deficiências literárias de O Capital mais intensamente do que eu." Mesmo assim, é surpreendente que tão poucas pessoas tenham considerado o livro como literatura. O Capital originou um número incontável de textos analisando a teoria do valor do trabalho de Marx ou sua lei da tendência decrescente da taxa de lucro, mas somente um punhado de críticos deu uma atenção séria à ambição declarada pelo próprio Marx - em várias cartas a Engels - de produzir uma obra de arte.

Um fator de dissuasão talvez tenha sido o fato de que a estrutura de múltiplas camadas de O Capital escapa a uma categorização fácil. O livro pode ser lido como um vasto romance gótico cujos heróis são escravizados e consumidos pelo monstro que eles criaram ("O capital que vem ao mundo manchado de sangue de cima a baixo e pingando sangue por cada poro"); ou como um melodrama vitoriano; ou como uma farsa macabra (ao ridicularizar a "objetividade fantasmagórica" da mercadoria para expor a diferença entre aparecimento heróico e realidade inglória, Marx está usando um dos métodos clássicos da comédia, despindo a armadura do galante cavaleiro andante para revelar um homenzinho roliço de cueca); ou como tragédia grega ("Como Édipo, os atores no relato de Marx da história humana estão sob o domínio de uma necessidade inexorável que se desdobra à sua revelia", escreve C. Frankel em Marx and Contemporary Scientific Thought). Ou talvez seja uma utopia satírica como a terra de Houyhnhnms em As Viagens de Gulliver, onde toda paisagem agrada e só o homem é vil: na versão de Marx da sociedade capitalista, como no pseudoparaíso eqüino de Jonathan Swift, o falso Éden é criado pela redução dos homens comuns ao status de Yahoos alienados, impotentes.

Para fazer jus à lógica desconcertante do capitalismo, o texto de Marx é saturado de ironia - uma ironia que ainda tem escapado à maioria dos estudiosos nos últimos 140 anos. Uma exceção é o crítico americano Edmund Wilson, que argumentou, em Rumo à Estação Finlândia - um estudo sobre a escritura e o funcionamento da história (1940) - que o valor das abstrações de Marx - a dança das mercadorias, o estúpido ponto em cruz do valor - é principalmente irônico, justaposto como estão a cenas sombrias, bem documentadas, da miséria e sujeira que as leis capitalistas criam na prática. Wilson via O Capital como uma paródia da economia clássica. Achava que ninguém jamais tivera um insight psicológico tão implacável da infinita capacidade da natureza humana de permanecer omissa ou indiferente aos sofrimentos que infligimos a outros quando temos uma chance de obter algo deles para nós mesmos. "Ao lidar com esse tema, Karl Marx se tornou um dos grandes mestres da sátira. Marx é seguramente o maior ironista desde Swift, e tem muito em comum com ele." Qual é, então, a conexão entre o discurso literário irônico de Marx e sua avaliação "metafísica" da sociedade burguesa? Se tivesse desejado produzir um texto direto de economia clássica, ele o teria feito e, de fato, o fez. Duas conferências apresentadas em junho de 1865, posteriormente publicadas como Salário, Preço e Lucro, dão um sumário conciso e lúcido de suas teorias sobre mercadorias e trabalho: "Um homem que produz um artigo para seu próprio uso imediato, para consumi-lo ele mesmo, cria um produto mas não uma mercadoria... Uma mercadoria tem um valor, porque é uma cristalização de trabalho social... O preço, em si, não passa da expressão monetária do valor...

O que o trabalhador vende não é diretamente seu trabalho, mas sua força de trabalho, cujo uso temporário ele transfere ao capitalista..." E assim por diante.

Sejam quais forem seus méritos como análise econômica, isso pode ser compreendido por qualquer criança inteligente: nada de metáforas elaboradas ou metafísicas, nada de digressões enigmáticas ou incursões filosóficas, nada de floreios literários. Então, por que O Capital, que cobre o mesmo terreno, tem um estilo tão diferente? Teria Marx perdido o dom da expressão direta? Decididamente não: quando deu essas conferências, ele estava também concluindo o primeiro volume de O Capital. Uma pista pode ser encontrada em uma das pouquíssimas analogias que ele se permitiu em Salário, Preço e Lucro, quando, ao explicar sua crença de que os lucros resultam da venda de mercadorias por seu valor "real" e não, como se poderia supor, pela adição de uma sobretaxa. "Isso parece paradoxal e contrário à observação cotidiana", escreve ele. "É também paradoxal que a terra se mova em volta do sol, e que a água consista de dois gases altamente inflamáveis. A verdade científica é sempre paradoxal, se julgada pela experiência do dia a dia, que capta somente a natureza ilusória das coisas." A função da metáfora é nos fazer olhar para algo de outra maneira, transferindo suas qualidades para uma outra coisa, transformando o familiar em estranho e vice-versa. Ludovico Silva, um crítico mexicano de Marx, se apoiou no significado etimológico de "metáfora" como transferência para argumentar que o próprio capitalismo é uma metáfora, um processo alienante que desloca a vida de sujeito para objeto, de valor de uso para valor de troca, do humano para o monstruoso. Em sua leitura, o estilo literário de Marx adotado em O Capital não é um enfeite colorido aplicado para tornar digerível uma exposição econômica maçuda, como geléia numa torrada grossa; é a única linguagem apropriada para expressar "a natureza ilusória das coisas", uma empresa ontológica que não pode ser confinada nas fronteiras e convenções de um gênero existente como economia política, ciência antropológica ou história. Em suma, O Capital é absolutamente sui generis. Não há nada remotamente como ele antes nem depois - o que talvez explique por que ele tem sido tão consistentemente negligenciado ou mal interpretado. Marx foi, de fato, um dos grandes gigantes atormentados.

Francis Wheen é autor da biografia Karl Marx (Record). O texto acima é trecho do livro O Capital de Marx: Uma Biografia, lançado na Inglaterra pela Atlantic e com lançamento no Brasil previsto para 2007 pela Jorge Zahar, parte da série Livros Que Abalaram o Mundo


Um comentário:

thiago disse...

tanto o livro do Francis Wheen, quanto o do Marshall Berman, mostram um Marx mais humano, um verdadeiro artista da modernidade. Marx sem dúvida foi um gênio. Parabéns pelo post e pelo blog, muito bem feito.