terça-feira, 2 de setembro de 2008

A Arte Que Cura

A ARTE QUE CURA

Os Últimos Meses de Vida de Glauber Rocha

por Antonio Júnior

Aos que nunca viram nada de Glauber Rocha há que adverti-los duas coisas: por uma parte, que ninguém pode aspirar a compreender o cinema brasileiro se não viu duas ou três obras deste cineasta extraordinário, injustamente etiquetado de “difícil”, “incompreensível”. E, por outro lado, que talvez seja um dos últimos expoentes de uma maneira de filmar personalíssima, irreverente, quiçá “difícil” – note a contradição -, chama esta ainda encontrada em um Jean-Luc Godard ou um Raoul Ruiz. “O problema do espectador na obra de arte é um problema que eu não considero, digo-lhe isto com a maior sinceridade. Porque eu acredito que a obra de arte é um produto da loucura, no sentido em que fala o Fernando Pessoa, que fala o Erasmo, quer dizer, a loucura como a lucidez, a libertação do inconsciente. É por isso que eu não me considero um cineasta profissional, porque se fosse teria que atuar segundo o ritual da indústria cinematográfica. Considero-me um amador, como o Buñuel, alguém que ama o cinema”, declarou pouco antes de morrer, num dos seus arroubos verbais de poderosa vitalidade.

O MUNDO AOS SEUS PÉS

De todos os cineastas brasileiros surgidos no Cinema Novo – Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Roberto Santos -, possivelmente o mais influente foi o baiano Glauber de Andrade Rocha (1939-1981), especialmente depois da aparição do seu segundo longa-metragem, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), filmado no mesmo ano do Golpe Militar e considerado um dos dez melhores filmes de todos os tempos pela revista francesa Cahiers du Cinema. Ele eclipsou a todos com sua rutilante celebridade, poesia agreste e personalidade contraditória, ganhando visibilidade internacional com sua aura desordenada e trágica, e abrindo mais recentemente caminho a novos realizadores do cinema brasileiro, como Walter Salles (“Abril Despedaçado”), Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”) ou Karim Ainouz (“Madame Satã”). Em poucos anos filma vários curtas - “Amazonas, Amazonas” (1965), “Maranhão 66”(1966) -, publica livros, viaja por inúmeros países, e realiza duas obras fundamentais, “Terra em Transe” (1967) – classificado de “ópera metralhadora” por Jean-Louis Bory, do Le Nouvel Observateur - e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (de 1969, conhecida na Europa como “António das Mortes”), apresentadas no Festival de Cannes, recebendo com a segunda o prêmio de melhor diretor. Foi o seu auge, e parecia ter o mundo aos seus pés. Na década seguinte, entretanto, sua estrela decaiu como consequência da emergência e triunfo do cinema comercial.

glauber por paula gaitán

A ESTÉTICA DO CAOS

A personalidade particularmente dotada de Glauber para perceber o cinema - ou seja, o próprio mundo -, em toda sua complexidade, se diluiu numa estética alarmante e desconcertante. Radicalizou a idéia de narrar o caos, sustentando que só o caótico sustenta a obra de arte, em um efeito artístico ambíguo que reflete esse mesmo caos iluminado ao fim por uma poética misteriosa, quase redentora. Exilado voluntariamente do Brasil, filma na África (“O Leão de 7 Cabeças”, 1969), Espanha (“Cabezas Cortadas”, 1970), Cuba (“História do Brasil”, 1972) e Itália (“Claro”, 1975). Ele que havia bebido em fontes diversas (Eisenstein, Bergman, Fellini, Visconti) para compor sua lógica, tentando decifrar o Brasil ao filmar o seu avesso, mergulhava de cabeça numa utopia cinematográfica estranha e marcada por contradições, ideológica, política, espiritual e mitológica. “Criticar – teorizar – praticar um cinema revolucionário, histórico – dialéctico e poético (o homem livre de seus fantasmas burgueses) é a única saída”, escreveu em 1975.

A QUEDA

Recusando uma carreira internacional convencional, passa por graves dificuldades financeiras, é ridicularizado no Brasil por seus próprios colegas, escreve para o irreverente semanário “O Pasquim” – num idioma particular com y e k no lugar de i e c – e para vários outros jornais, provocando polêmicas e reações furiosas. Em 1979, no programa “Abertura”, da TV Tupi, na época a mais popular do Brasil, faz entrevistas com grande repercussão. Torna-se uma espécie de profeta, de intelectual que perdeu a razão, e mesquinhamente contam-se casos reais dele caminhando na praia de Ipanema, enrolado num cobertor como mendigo, falando sozinho; conversando com as paredes do hotel, em Santiago do Chile, com um microfone na mão: “Aqui é Glauber Rocha, eu sei que a Cia está gravando, e a KGB também”; das brigas irreconciliáveis com diversos amigos. Em 1979, num último esforço para sair das trevas, vende seu único bem, uma casa, para filmar “A Idade da Terra” em Salvador, Brasília e Rio de Janeiro, com um elenco de estrelas (Norma Bengell, Tarcísio Meira, Antonio Pitanga, Danuza Leão). “Esse filme materializa os símbolos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, das santas em revolucionárias. Tudo isso está no filme dentro do grande cenário da História do Brasil”, diz no seu lançamento. Quebrando com o cinema teatral e ficcional, numa desintregação da sequência narrativa sem a perda do discurso, o filme é um fracasso de público e é vaiado no Festival de Veneza. Glauber, alucinado, magoado, faz passeata, ofende o júri, ataca de reacionário ao vencedor, o francês Eric Rohmer, prometendo nunca mais voltar ao seu país e sempre defendendo a sua obra: “Busco um outro cinema. Um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, antiliterário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido”.

No final de 1980, o maior cineasta brasileiro do século XX, se encontra em Roma, hospedando-se com Luchino Visconti, e por fim, Paris, acompanhando uma retrospectiva de seus filmes. Sua câmara havia revelado a essência de um país, fugindo da beleza defunta tipo cartão-postal, e pousando na loucura e no desespero, na crueza e nas mazelas sociais. Mesmo assim, aos 41 anos, tinha todas as portas fechadas e vivia numa terrível penúria econômica. Havia visitado Portugal pela primeira vez em 1962. Tentando colocar a cabeça em ordem, resolve viver em Sintra, “o lugar mais bonito do mundo”, como dizia. Leva a esposa colombiana, Paula Gaitán, fotógrafa e atriz, e os dois filhos de menos de dois anos de idade, Ava Patria Yndia Yracema Gaitán Rocha e Erik Arouak. Se define como sebastianista e apocalíptico, e é recebido de braços abertos por dois cineastas, Manuel Carvalheiro e José Fonseca e Costa. É um homem amargurado, decepcionado, com problemas políticos e saúde frágil. Se sentia cansado, doente, visitara médicos em Paris, porém os mais íntimos conheciam a antiga mania de doença do diretor, e nunca levaram a sério sua hipocondria.

glauber por paula gaitán

VIVENDO EM SINTRA

Em Sintra desde 1973, num grande casarão acostumado a hospedar intelectuais e artistas de todo o mundo, o engenheiro de som português Carlos Pinto (São Pedro do Estoril, 1950) recebe um telefonema do cineasta brasileiro, pedindo o seu apoio, “talvez pudesse ficar em sua casa por uns tempos”. “Venha quando quiser”, responde Pinto. Profissional dos mais requisitados, com currículo admirável, Carlos Pinto trabalhava basicamente no cinema francês, filmando muito fora de casa, e ainda não conhecia pessoalmente o autor de “Barravento” (1960). Na época da chegada de Glauber, em janeiro de 1981, filma em África, “Música em Moçambique”, de Fonseca e Costa. Terminada as filmagens, encontra Glauber hospedado no Hotel Central, ocupando todo o primeiro andar de um hotel praticamente vazio. Sua esposa, Paula, de família burguesa, não admitia viver numa casa com estranhos, e o casarão de Pinto, além do próprio, era bastante concorrido, habitado por um psicólogo e uma suiça professora de línguas. Só que a família Rocha não tinha condições financeiras para viver num hotel. A solução foi procurar uma casa para alugar. E encontraram a antiga residência de Ferreira de Castro, ao lado da casa de Pinto, e também um dos escritores favoritos de Glauber, que lera boa parte de sua obra e havia feito um documentário em 1974, desaparecido. “Aqui é bonito. Escrevo diante de uma panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma montanha antes habitada por Byron numa linda casa onde viveu Ferreira de Castro. As coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beira mar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do IV Império de Sebastião Ressuscitado...”, anotou no seu diário em 26 de abril de 1981. Eles viveram nesta casa durante três meses, depois mudaram para a Estalagem dos Lobos, perto de Montserrate, e terminaram na própria casa de Carlos Pinto, então já um dos melhores amigos e principal confidente de Glauber Rocha.

Quando este espírito independente, conhecido em todo o mundo por sua intransigência e temperamento apaixonado, chegou no Monte da Lua, era um inverno muito rigoroso. As névoas cobriam as ruelas, as montanhas e os jardins; chovia quase sempre. Sintra era conhecido como um reduto de artistas, de pensadores. Era muito mais forte a marca da passagem de Lord Byron, Hans Christian Anderson e William Beckford, entre outros. Importantes escritores, pintores, escultores, atores, músicos, pensadores ou jornalistas passavam por lá, permanecendo longas temporadas. Neste mesmo inverno Wim Wenders rodou parte de “O Estado das Coisas” na Praia Grande, e o chileno Raoul Rouiz e o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, um inimigo de Glauber, também filmavam nas redondezas. Glauber Rocha, sempre reservado, longe do mundo mundano da jet-set, finalizava “Revolução do Cinema Novo”, uma antologia de textos críticos produzidos entre 1958 e 1980, que seria publicado poucos dias antes de sua morte, e escrevia o roteiro para um próximo filme, “O Império de Napoleão”, planejado para um elenco encabeçado por Jack Nicholson e Jane Fonda, e que já tinha confirmado o nome do gênio Orson Welles, que não receberia cachê, apenas pedia hospedagem confortável e garrafas de uísque.

ROTINA INTELECTUAL & VISITAS IMPORTANTES

Diante da paisagem deslumbrante da vila de Sintra, que Eça de Queiroz já dizia que não há um só recanto que não seja um poema, Glauber redescobria o paraíso. “Me sinto reprojetado nas origens”, dizia. Abrindo os pacotes e malas que o acompanhavam em todas as viagens – cartas, roteiros, textos -, partia para a máquina de escrever, como se estivesse numa dessas terríveis batalhas. Muito disciplinado e rigoroso, acordava na mesma hora, tomava o café da manhã e escrevia até as 13 horas seus textos, roteiro e matérias para jornais. Ouvia Villa-Lobos, estava sempre lendo ou escrevendo, e não gostava muito de visitas, sendo praticamente arrastado por colegas para jantares ou eventos em Lisboa. Mesmo assim, recebia muita gente: cineastas brasileiros e portugueses, críticos de cinema, os escritores Jorge Amado e Zélia Gattai, o ator francês Patrick Bauchau, o produtor Luiz Carlos Barreto, o Presidente (do Brasil) Figueiredo e principalmente o autor de “A Casa dos Budas Ditosos”, João Ubaldo Ribeiro, seu grande amigo e companheiro desde a infância. Porém a maior parte do tempo estava sozinho, em casa. Vez ou outra, passeava pela praça do Castelo, caminhava de mãos dadas com os filhos, lia jornais no Café Paris. Parecia bem, tranquilo, ia almoçar nos restaurantes locais, tomava vinho tinto, fumava haxixe. Certa vez, encontrou casualmente uma turista da Bahia, poderosa Mãe-de-Santo, e emocionado convidou-a para almoçar. Tinha grande respeito pelo candomblé.

CRISES

A depressão também era uma constante no seu cotidiano. “Vim para morrer em Portugal”, disse a Pinto. O amigou procurou animá-lo, confortá-lo, ele era jovem, talentoso, as coisas iriam melhorar. “É o meu coração. Não está bem”, confessou. Se preocupava com os problemas financeiros permanentes, com a política e o cinema brasileiros, não conseguia esquecer a morte trágica da irmã, a fabulosa atriz Anecy Rocha (“A Lira do Delírio”), que caíra no poço de um elevador em 1977; se sentia incompreendido e não aceitava a proibição, pela própria família do retratado, do curta-metragem “Di Cavalcanti” (1976), premiado em Cannes. Também tinha saudades da mãe, Lúcia Mendes de Andrade Rocha, escrevendo sempre para ela, numa ligação profunda. O casamento também ia mal das pernas. A simpática Paula, uma loura de grande cabeleira, sofisticada e inteligente, muito mais jovem que ele, desejava voltar para o Brasil, e mesmo admirando o marido, não entendia seus enigmas. Bela e mimada, não se situava completamente na pele de mãe de família, e ainda mais passando dificuldades. Recebia ajuda dos pais ricos, não acreditava numa suposta enfermidade do companheiro e vivia implicando para que ele superasse suas angústias. Uma crise conjugal educada e silenciosa, ficando visível que algo não funcionava muito bem.

O INCÊNDIO DA CINEMATECA PORTUGUESA

A imprensa deu intensa cobertura a temporada de Glauber Rocha em Sintra, com fartas manchetes e longas entrevistas comuns a uma celebridade respeitada. O cineasta, em eterna preocupação com a preservação das cópias de seus filmes, ficou entusiasmado com o ciclo dos seus filmes anunciado pela Cinemateca Portuguesa, em abril de 1981. O catálogo foi editado, a mídia deu bastante destaque à mostra, e na primeira semana de exibição, durante a projeção de um filme do belga René Aiollo, a sala de projeções pegou fogo destruindo totalmente toda a obra de Glauber. Alucinado, viu como um sinal do fim; foi um golpe mortal. A queda foi instantânea. “A doença, a precariedade financeira e as incertezas me levam a pensar que vivo em Portugal meu segundo e último exílio. Foi o preço que paguei no Brasil pela liberdade artística”, disse. Em julho, Carlos Pinto filmava sob a direção de António Reis, em Trás-os-Montes, e ao voltar encontrou o amigo internado no Hospital de Sintra. Esteve três dias sendo tratado, suspeitavam de uma doença broncopulmonar, talvez uma tuberculose. Pinto se assustou com a sua figura esverdeada e abatida, olhos amarelados, e ao apertar a sua mão, ouviu dele: “Estou com uma angústia”. Transferido para o Hospital da CUF, em Lisboa, melhorou a olhos vistos. Lúcido, brincalhão, recebendo visitas, lendo jornais e vendo televisão, criticando as autoridades e políticos que apareciam: “Esses engravatados não me deixam em paz”. Ainda acamado, recebeu os primeiros exemplares de “Revolução do Cinema Novo”, o que o deixou muito contente. Parecia estar bem, como se tudo não passasse de uma elaborada encenação para ajudá-lo a renascer dos mortos. Paula Gaitán havia mudado com os filhos para o Hotel Tivoli, tirava fotos polaroid do companheiro e seus amigos, circulava por Lisboa com o cantor Fagner, e não parecia ter consciência da gravidade da enfermidade de Glauber. Ele próprio não sabia qual era o seu mal. Os médicos não entravam num acordo, contraditórios. Havia rumores não confirmados de um câncer. Carlos Pinto o visitava todos os dias. “Era um personagem adorável, e a nossa ligação muito profunda”, recorda. Na dia 20 de agosto, após uma série de exames rigorosos, Glauber disse que não gostaria de ficar sozinho naquela noite, pediu que Paula o fizesse companhia. Ela negou, não podia deixar os filhos sozinhos no hotel. “Então você fica, Pinto. E a Paula vai”, decidiu. O amigo disse que poderia ficar sem problemas, mas as enfermeiras não permitiram, pois o horário de visitas era rigoroso, restrito. Glauber estava bem, radiante, conversador como nos seus melhores dias, porém havia algo estranho no ar, uma energia muito forte que tomava todo o quarto. Na mesma noite, sozinho, ele entrou em coma.

MORTE NEBULOSA

No dia seguinte foi levado para o Brasil. Carlos Pinto e José Fonseca e Costa acompanharam o parceiro até o aeroporto, dentro do ambulância. O estado era crítico, Paula estava muito nervosa, e Glauber, mesmo todo entubado, tinha bom aspecto. Ficaram algum tempo à espera do avião. Então Glauber falou, algo incompreensível, sussurrante. O que ele queria dizer? Qual seria a sua mensagem final? Será que não desejava morrer no Brasil? No dia 22 de agosto de 1981, o gênio incompreendido, que lia Nietzsche e Schopenhauer aos 13 anos, morre, e é velado no Parque Lage, no Rio de Janeiro, cenário de “Terra em Transe”, em meio a grande comoção e exaltação. Poucos dias após partir para a Eternidade, seus filmes estariam sendo exibidos em mostras retrospectivas em vários países: Inglaterra (National Film Institute), Estados Unidos (American Film Institute) e França (Instituit Nacional d’estudes Cinematographiques). As causas da morte ainda hoje são nebulosas, fala-se inclusive de Aids. O mais provável é que foi contaminada ao fazer biópsia com equipamento não esterilizado. Segundo D. Lúcia, “Meu filho era famosíssimo e paupérrimo. Não morreu da vontade de Deus, morreu de uma doença chamada Brasil”. Já Glauber, dizia: “Prefiro ser um cadáver a um desses mortos-vivos que andam por aí”. Tinha 42 anos, ele que desde adolescente dizia que morreria aos 42 anos, o inverso de 24, idade em que morreu o poeta Castro Alves, que fazia aniversário no mesmo dia e um dos seus favoritos. Foi-se, carregado por sua mensagem exuberante, valente e lúcida. Se continuasse filmando possivelmente ainda estaria vivo. A arte seria sua cura. Mas não deixaram. Incomodava demais aos medíocres.

glauber por paula gaitán

TODA O CINEMA DE GLAUBER:

1957 – O Pátio (CM)

1959 – Cruz na Praça (CM, inacabado)

1960 – Barravento

1964 – Deus e o Diabo na Terra do Sol

1965 – Amazonas Amazonas (CM)

1966 – Maranhão 66 (CM)

1967 – Terra em Transe

l968-72 - O Câncer

l969 – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro / António das Mortes

l969 – O Leão de Sete Cabeças

1970 – Cabezas Cortadas

1972-74 – História do Brasil

l975 – Claro

l976 – Di Cavalcanti (CM)

l979 – A Idade da Terra

ENQUANTO FALAVAS DE ANDARA

A propósito de “A Asa e a Serpente” e “Terra da Sombra e do Não” de Vicente Franz Cecim

por Antonio Júnior

Um pouco de chá de jasmim, dois livros, a fumaça de um cigarro. Tenho a certeza que viro o corpo do avesso, derramando sobre os olhos a insônia das palavras. Reconheço-te, poeta do invisível, percebo o lume dum coração antigo e simples. Não existe dia e não existe noite. Existem apenas as luzes de todas as cores que acendem e apagam em cada verso. Uma sinfonia de conhecimentos, fundamentada na espiritualidade vivida à margem da religião. Espiritualidade do imaginário, de ser e não-ser, numa mística com raros correspondentes literários. Há uma respiração oculta, impressionante. Como se fosse uma meditação. As palavras oram, num ritmo lento, e o leitor maravilhado sente cada pausa. Respira a literatura que abre portas para outros céus, intransponível numa abordagem superficial. O realismo é pagão, a atmosfera psicológica levada as últimas consequências, a natureza faz-se luz. Acende-se Andara, o vilarejo enigmático, numa cegante luminosidade, soprando os artifícios do mundo. Território do Nada habitado por mulheres que levitam, Anjos, aves, serpentes e insetos. As vozes das coisas. Ao encontro da intensa chama do sonhado e do vivido, ele imagina o leitor, nos vê. Cada vez mais próximo como se avançasse. Por fim, cintilando sobre o indecifrável, Andara enfrenta a crueldade da vida com dignidade e alguns vislumbres de esperança.

“Talvez invente um final para essa história agora, diz. E o homem ouve. Talvez recorde à medida que for inventando. Não se sabe nunca. Há a memória, esta coisa à noite. Não lembro mais também os nomes. De qualquer maneira, nela, imaginação, há coisas que crescem, fogos enormes, e há o que se apaga. Ou vem mudado de volta, na volta, quando se quer lembrar. Na Memória” (“A Asa e a Serpente”, 1979)

O xamã Cecim voa na oceânica noite da zona sagrada, entre a prosa e a poesia. O seu voo é inexorável, invasor e contínuo, em transe, abrindo espaço entre as sombras. Está muito longe de poetas armados com o vocabulário tradicional, desse algo que se limita a participar na obscuridade e na devastação ambientes. Longe, muito longe, de versos gélidos e estereótipos, roubados ao vazio existencial, cujo fluxo hoje devemos categoricamente recusar. Coisa que não significa necessariamente ficarmos em silêncio. Mas que implica escolhermos as vozes a que desejamos juntar-nos. A escolha de um sentido no mundo atual situa-se dentro de cada um de nós. Sejam quais forem as circunstâncias em que nos encontremos, podemos escolher em nós mesmos a verdade que nos convém. Não se trata de uma escolha entre o bem e o mal. O bem e o mal existem em qualquer caminho. A opção a fazer é entre a intensidade que cada indivíduo pode ter por si mesmo e o caos que em si mesmo admite. A literatura de Vicente Franz Cecim, no silêncio ou na agonia, escolhe um mundo de numerosos sésamos da sedução visionária, de assombro metafísico; vem do interior, do invisível, além das tripas do próprio corpo, da desgraça de existir fisicamente. Os seus versos são rochas, raízes, frutos, terra, mel. Uma viagem que questiona o sentido da própria vida, sobretudo quando este sentido é trágico. Cecim escreve sem temor. Ao fazê-lo, contorna obstáculos, arrisca-se, numa legitimidade azulínea que perturba, desnuda e edifica uma cidade invisível: Andara. Cidade recriada pelo espírito, povoada pelo leitor iniciado que sabe ou quer voar; cidade de talvez outros nomes, de outras coisas ainda inexistentes, pintada da essência do fascinante. Ler “A Asa e a Serpente” e “A Terra da Sombra e do Não” – ambos da editora Cejup, 2004 -, é estar na beira do abismo, entre o corpo e o abstrato, estar no pulsar de certas íntimas revelações.

SOB A LUZ DE SINTRA

por Antonio Júnior

01.

Enquanto existir Primavera no mundo

entraremos no dormitório verde-musgo,

onde poetas de olhos brilhantes,

metade paisagem viva metade névoa,

inquietos e jurando por todas pétalas molhadas,

são o próprio silêncio perfumado de Sintra.

02.

Se um homem chora na noite

e ninguém o vê chorar,

será que lágrimas correm

no seu rosto?

Se eu não sei quem sou

e não sei o que quero

como encontrarei

uma maneira de viver de novo

no malabarismo azul das palavras?

Continuo apagando a luz do medo cada noite

para afastar os demônios

Continuo dormindo de olhos abertos

Para esperar.

Noites e mais noites à espera

da transparência que engana.

Cansado, muito cansado.

Do tédio, das normas, da solidão,

de contas a pagar.

E no inverno é pior.

Há uma apatia primitiva mutilando poemas.

Inteiramente vencido

beijo os pés do movimento imóvel.

Ele lê a minha alma numa lentidão de um salmo.

Abençoada fome.

E há calor. E há vida.

E vou para dentro. Para dentro do enigma.

Ardendo na chama do silêncio até o Anjo.

O Anjo ferido.

O Anjo intocável, púrpura,

ardendo num círculo latejante

que tudo une e separa.

Porque nele reside o êxtase.

03.

São vinte e duas e trinta em Lisboa

e entre elétricos, bolas-de-berlim e ruas estreitas

tenho um irmão deste lado, eu que sou do lado de lá.

Os dias a cada amanhã se inclinam em sua direção

como as árvores se inclinam diante do amanhecer

porque eles não se equivocam:

o meu irmão é um visionário

um apostólo da noite lunar

um abrigo na tempestade

uma flor inclassificável

de perfume honesto e irradiante.

São vinte e duas e trinta em Lisboa

de uma noite de primavera

e enquanto sussurro uma canção anônima

fumo um cigarro e tomo um copo de vinho

apoio-me na agradável sensação

de ter um irmão de antes dessa própria vida,

livre e puro.

E com ele, por instantes recupero a alegria

e me encho de poesia e risos animados.

E ergo-me, assim, vivo e sinuoso,

e brindo a sua loucura doce e luminosa!

04.

Se as melhores intenções

não são inocentes, não se assuste,

é que aprendi a aproveitar ao máximo

os relâmpagos do coração

em sombra e luz

Se não sei muito bem o que eu quero dizer

não espere palavras luzindo

me angustia tropeçar nelas

abrigando-me, total, no ser e do ser,

ultrapassando o estado de expectativas

no mistério muito mais latejante

de palavras não ditas

Há em mim, não sei se é evidente,

uma energia animal à flor da pele

um lado selvagem

um fim de inverno

que desliza sinuoso

na irradiação de gestos alheios,

atento, penetrando olhos de fogo

no enigma, na revelação, no inseparável

De toda maneira, entre a boca e o frêmito,

não há nada que fazer,

a suavidade de tal fascínio

é demasiada revigorante e sacia fomes.

E assim vou, contemplando, toda a visão do ser,

rodeando-o em aparições coloridas e silenciosas.

Sente o sortilégio?

05.

Ando cego.

Nada vejo

ou vejo tudo

como um inútil

e velho filme

repetido inúmeras vezes

na tevê.

O céu, teimoso,

berra um silêncio cinzento

os olhares aguados,

talvez mortos

e as palavras não sabem

ser versos

Ando cego

e quem me guia são os sonhos

um mundo irradiante, azul e verde,

de brisas do mar e de mata tropical:

as árvores falam

os dragões existem

o amor feito de fios de seda –

invisíveis fios

a nitidez, a luz, o fascínio!

as montanhas se movem, caminham

a lua beijando meus lábios

e a poeta, sob o signo da generosidade,

num mar de jasmins,

voa em silêncios

Ando cego

atado a um coração desafortunado

e nada me é mais fundamental

que os sonhos vivos

dando-me a alquimia que faz viver

06.

Eu recordo longe,

um fascínio

à deriva

Este vacilante desejo...lento

Faz muito tempo, um céu, um rochedo,

as palavras sob a lua

sendo devoradas aos poucos

Eu recordo

os cristais

de uma mente poética, olhos, tal como ressurreição

e ao meu redor o perfume de Sintra

Serenamente agora

conto estrelas

uma a uma

Para quem?

Qual o alívio?

Quem me olha ao anoitecer?

De quem é a carne

que me arrasta para

lugares esquecidos?

Eu recordo, longe,

a alegria do mundo.

Tudo o mesmo e outro.

Outro vinho e comunhão.

Você me entende?

07.

Tenho andado a olhar:

quando a lua se veste de pálido

seu rosto é de uma candura luminescente

quando a lua é um espelho

cada uma de suas expressões

são tributos à alegria

E assim és, eterna menina da lua,

figura de um conto de fadas

um pouco do claro azul do dia

um pouco do escuro azul da noite

adornada por flutuantes névoas de luz

tornando todo o conjunto bastante belo

Tenho andado a olhar.

DA LUZ. DAS SOMBRAS. DOS CORPOS

por Antonio Júnior

01.

da luz

vou fechar o livro e morder a luminosidade. trincá-la, com vigor, para que a luz escorra prateada pelos lábios, e um fio de audaciosa cintilânca se cristalize na pele, descendo pescoço abaixo e morrendo no peito, no ponto exato da couraça que protege o coração. acompanhando a trajetória do líquido, o estranho sorrirá, surpreendido, mostrando dentes muitos alvos, e depois de suavemente cruzar os olhos grandes com os meus olhos gulosos fingirá observar a paisagem urbana, vista através do vidro embaciado do comboio. então a sua expressão não será a mesma, dando ideia de deserto junto ao mar, e subitamente, escapando um suspiro ambíguo, serão soprados sentimentos de lírios. uma grande publicidade de neón verde-aveludado surge como visão de sonho. estremecendo, sóis na pele pálida, e sobre o infindável silêncio esculpido entre estranhos, verei outra vez os olhos de resignado poema cruzando com os meus olhos.

02.

das sombras

alargo os passos. a escada rolante sepulta a pressa. devo esperá-lo, fingindo que não o espero, alcançar o exterior da estação como quem tem um caminho a seguir. imitar a vida dos outros passageiros. avisto um céu límpido, de uma claridade opressora. sei que ele me segue. ele, o homem com o livro na mão, sentado no banco esquerdo, ao lado de uma das portas de saída. vi sua língua dura, cheia de saliva, e sem que tenha aberto a boca. também sorriu, de forma sublime, algo imune da crueldade. um sorriso secreto, ofertado, mas sem visibilidade facial. talvez inventasse lírios sobre o meu corpo desnudo. assim o imaginei. uma sombra me envolveu, pensei em levantar e cuspir nos seus desejos. recordei as traições, os desgostos, as mentiras que deixei por onde passei. quem ele pensa que é para estar ali, sentado, inocente como uma nesga de luz na noite? a imobilidade absoluta de sua luxúria mascarada me perturbou. a cada estação perdia referências, não sabia mais do meu destino, para onde me dirigia. de vez em quando olhava com o canto dos olhos os seus olhos, anotando na memória uma insuspeita espera. tive ódio. desci na próxima estação, irritado, febril, em um bairro que não é o meu. ele me segue, sinto o seu cheiro de prolongada eternidade.

03.

dos corpos

mantém o corpo em surdina. algo irá acontecer. na parte mais secreta do jardim do museu senta-se num banco, e abre o livro, sem lê-lo. pousa a mão no sexo, e pensa em fechar os olhos, como quem espera um beijo. a tarde estilhaçava-se em feixes de luz. o outro, sem nenhum gesto óbvio, atravessa o jardim e desaparece entre árvores frondosas. paralisado, ouve atentamente o seu coração. o que irá fazer? qual a atitude a tomar? põe-se em chamas, arde, personagem de um sonho alucinógeno. havia seguido-o desde o metrô, feito pássaro num voo precipitado, pronto para projetar o corpo em um carro em movimento. devagar, contempla o horizonte qualhado de prédios feridos, além do jardim delicado sem ninguém. a intenção era ternamente cumprimentar o estranho, deslizar o olhar no seu rosto aflito, enquanto trocariam palavras de açucenas. daria o número do celular, marcariam um encontro amigável para uma noites dessas, - noites de fósforos iluminando ausências -, e voltaria para casa sorvendo alegrias. nada disso acontece, temem o relâmpago das palavras. o estranho o espera no subterrâneo das folhagens, possivelmente latejando de fulgor, o corpo coberto de minúsculos pontos desassossegados. fotografa a espuma animal. não conversarão. dos corpos agarrados, se extinguindo em gemidos e solidão. e ali, no cio, começará o esquecimento. hesitante, fecha o livro e levanta. espia o silêncio. faz-se tarde. parece anoitecer de repente, e dentro dela um vazio sem dimensão. está só, e alguém espera. o ar cheira a anis. zune o silêncio das folhas e dos insetos. um arrepio percorre o seu corpo que não consegue viver sozinho. inacessível e sem consolo, penetra na fecunda vertigem que engana.

enviada por antonio jr

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